Ingarden (1979) – § 1 Introdução

Estamos perante um fato curioso. Quase todos os dias nos ocupamos de obras literárias 1. Lemo-las, somos impressionados por elas, agradam-nos ou desagradam-nos, apreciamo-las, formulamos diferentes juízos sobre elas, discutimo-las, escrevemos tratados sobre obras individuais, ocupamo-nos da sua história e, muitas vezes, elas constituem quase uma atmosfera em que vivemos. Parece-nos, portanto, que conhecemos os objetos desta ocupação sob todos os aspectos e exaustivamente. Contudo, interrogados sobre o que seja propriamente a obra literária devemos com certa surpresa admitir que não encontramos nenhuma resposta correta ou satisfatória. O nosso saber a respeito da essência da obra literária, com efeito, não só é insuficiente mas sobretudo pouco claro e muito incerto. Poder-se-ia julgar que isto se dá apenas connosco, leigos na matéria, a lidar simplesmente com obras literárias, sem possuirmos conhecimentos teóricos sobre elas. Todavia não é assim. Se consultarmos os historiadores da literatura ou os críticos, ou mesmo aqueles que tratam da ciência da literatura, as respostas ao problema não são sensivelmente melhores. Os múltiplos juízos que nos oferecem são muitas vezes contraditórios e, no fundo, não constituem resultado sólido de uma investigação que propriamente incidisse sobre a essência da obra literária. Exprimem antes as chamadas convicções «filosóficas» do seu autor, i. é, normalmente certos preconceitos não-críticos, consolidados pela educação e pelo hábito, e que provêm de uma época já passada. Nas obras de ciência literária da autoria de escritores importantes não encontramos em geral formulado com clareza o problema da essência da obra literária como se fosse um assunto do conhecimento de todos e inteiramente insignificante 2. E ainda que por vezes se ponha esta questão, ela aparece desde o princípio entretecida de vários problemas e pressupostos que objetivamente lhe não dizem respeito e tornam impossível uma resposta adequada. Omitida a questão central, insiste-se em resolver vários problemas especiais que — por mais interessantes que em si sejam — nunca permitem uma solução final desde que fique por esclarecer a essência própria da obra literária. A esta questão central queremos nós dedicar a investigação que se segue.

O nosso propósito é, no fundo, modesto. Queremos principiar por uma «anatomia da essência» da obra literária, cujos resultados principais nos devem abrir o caminho para a sua consideração estética. Os problemas especiais de Estética e Teoria da Arte que atualmente são tratados sob vários aspectos ficam excluídos da nossa consideração e só mais tarde devem ser abordados com base nos resultados por nós obtidos. Contudo, a sua formulação correta já depende, a nossa ver, dos resultados aqui representados.

Naturalmente, não pretendemos de modo algum diminuir a importância das conclusões de outros investigadores para a evolução da ciência da literatura, ainda que sejam diferentes as afirmações fundamentais a que chegamos. Muitos problemas não têm solução quando se não segue o caminho acertado. Exigimos apenas uma posição inicial perante a obra literária, em princípio distinta das tendências psicológicas e psicologistas até agora dominantes, e esta posição levará por si mesma à purificação e modificação das opiniões até agora defendidas. Enquanto se não tiver assumido perante os objetos da investigação uma atitude fenomenológica puramente receptiva e dirigida para a essência da coisa há sempre a tentação de passar por cima daquilo que lhe é específico, «reduzindo-o» a outros elementos já conhecidos. É este o caso, também, dos estudos sobre a obra literária. Revelam quase todos tendências «psicologistas» ou, pelo menos, psicológicas. Mesmo em obras que gostariam de romper com o psicologismo — como, p. ex., o interessante livro de Dohrn, Die künstlerische Darstellung ais Problem der Ästhetik, ou o estudo publicado em língua polaca por Zygmunt Lempicki (A respeito do problema da fundamentação de uma poética pura) 3 — a tendência para reduzir a obra literária a certos fatos e contextos psíquicos, decompondo-a neles, continua ainda muito intensa. Parece tão natural a muitos investigadores categorizados ser a obra literária uma realidade psíquica que nem sequer admitem se fale da sua redução a algo de diferente. Nós, pelo contrário, julgamos poder delinear na obra literária um objeto de estruturação inteiramente específica, que nos interessa também por outras razões já referidas no Prefácio.

  1. Empregamos a expressão «obra literária» para designar indistintamente qualquer obra de «literatura», sem precisarmos se se trata de uma autêntica obra de arte ou de uma obra sem valor. Só quando procuramos focar os aspectos da obra literária, que a constituem obra de arte, usaremos esta última expressão.[]
  2. Isto refere-se, naturalmente, à situação que reinava outrora, em 1927, quando estas palavras foram escritas. Desde aquela época muita coisa se tem modificado.[]
  3. W sprawie uzasadnienia poetyki czystej, publicado na homenagem a K. Twardowski, em Lwów, 1922. Constituem um passo essencial no sentido da libertação do psicologismo muitas afirmações de Lempicki na sua recensão publicada na «Zeitschrift für Philologie», t. x, do livro Gehalt und Gestalt de O. Walzel. A primeira tentativa para considerar a obra literária puramente em si mesma, que julgamos ter sido a do tratado de W. Conrad, Der ästhetische Gegenstand, na «Zeitschrift für Ästhetik», vols. iii e iv, não exerceu, infelizmente, influência alguma. Contudo, Conrad vai longe de mais ao ver na obra literária um objeto ideal, o que é insustentável, como pretendemos demonstrar.[]