Esses versos, originalmente escritos e reunidos em um volume por volta de 1907, prestam-se inequivocamente a uma interpretação heideggeriana:
<poesie>É uma tarde triste e cinzenta,abandonada, como minha alma;
e é essa velha angústia
que habita minha hipocondria habitual.
Não consigo nem mesmo entender vagamente a razão dessa angústia.
nem mesmo vagamente entendê-la;
mas eu me lembro e, lembrando, eu digo :
Sim, eu era uma criança e você era minha companheira 1
A angústia, à qual Unamuno e, antes dele, Kierkegaard tantas vezes aludiram, aparece nesses versos — e, sem dúvida, em muitos outros — como um fato psíquico radical, que não quer nem pode se definir, e se afirma como um sinal persistente de humanidade, como uma ansiedade existencial (Sorge), mais do que como uma verdadeira angústia heideggeriana (Angst), mas que vai se transformar nela. E, na verdade, o mundo do poeta, o seu mundo, é quase sempre uma questão de angústia (Zuhandes). Toda vez que você acorda”, meu professor costumava dizer, “há uma pequena mosca cujo zumbido não pode ser ouvido distintamente por todos, mas que todos percebem de alguma forma. Dessa minúscula e escura mancha surge todo o globo, a iridescente bolha de sabão de nossa consciência.”
A angústia de Heidegger (Angst), que surge no limite extremo da existência comum, no grande penhasco de frente para o mar, é acompanhada por uma visão da totalidade da existência e uma reflexão sobre seu fim e conclusão: a morte. A angústia é, na verdade, um sentimento complicado sobre a totalidade da existência e seu abandono essencial diante do infinito, impenetrável e opaco.
<poesie>Que o universo é uma falhana pureza do não-ser, 2.
diz, se bem me lembro, Paul Valéry, em um suspiro hiperbólico, exalado como tantos de seus suspiros de angústia heideggeriana, e que expressa, à sua maneira, o caráter fautif 3 do existir. Mas a existência que se encontra consigo mesma (eigentliche Existenz), que não mais foge ou se dispersa no mundo, é isso que a angústia nos revela. É a existência, limitada, finita e humilhada, mas total, que aparece em nossa consciência com a angústia da morte. A morte não é, portanto, de acordo com Heidegger, um acidente em nossa existência mundana, ela é a existência mesma prestes a alcançar sua própria conclusão.
Pela primeira vez, o filósofo está tentando — e deve ter sido um alemão que estava tentando — nos trazer algum consolo do fato de morrer, com a própria morte, com sua essência lógica, pode-se dizer, fora de qualquer promessa de descanso ou de uma vida melhor. Pois é na interpretação existencial da morte — a morte como um limite, nada em si mesma — que devemos buscar a coragem para enfrentá-la: a decisão resignada (Entschlossenheit) de morrer e a não menos paradoxal liberdade para a morte (Freiheit zum Tode).
Não vamos descer às profundezas da ingenuidade a que essa filosofia, como tantas outras, dá testemunho em sua fase construtiva. Alguém nos acusaria de estarmos inspirados por das Man, se pretendêssemos objetar à contradictio in adjecto contida nessa decisão resignada, etc. Deixemos isso de lado. Vamos considerar o seguinte: Miguel de Unamuno, que, a propósito, está alguns anos à frente da filosofia existencialista de Heidegger e que, como Heidegger, se considera um dos descendentes de Kierkegaard, encontra na angústia da morte um consolo de revolta cujo valor ético é inegável. Enquanto Heidegger dá um sim categórico de resignação, nosso Miguel de Unamuno dá um não quase blasfemo à ideia de uma morte que, no entanto, ele reconhece como inevitável. O Credo quia absurdum est 4 de Tertuliano, que mascara um desafio da fé à razão e, de certa forma, uma esperança de revelação pelos caminhos da racionalidade, é superado pela decisão de nosso pensador e poeta de se rebelar e ser livre contra o inescapável, que não apenas pensa na morte, mas acredita nela e, ainda assim, se rebela contra ela e nos recomenda a rebelião. Portanto, não hesitei em considerar Unamuno como o antípoda dos estoicos. Um dia demonstrarei, ou tentarei demonstrar, que o pensador basco é um espanhol antisseneciano e, nem é preciso dizer, tão espanhol quanto o cordobês 5.
- Es una tarde cenicienta y mustia, destartalada, como el alma mia; y es esta vieja angustia que habita mi habitual hipocondria. La causa de esta angustia no consigo ni vagamente comprender siquiera; pero recuerdo y, recordando, digo: si, yo era nino y tu, mi companera. Antonio Machado, “Galeries”, LXXVII, Champs de Castille[↩]
- Paul Valéry, “Ébauche d’un serpent”, Charmes (1922) [↩]
- Em francês no texto.[↩]
- “Creio porque é absurdo”[↩]
- Sêneca nasceu em Córdoba (por volta de 4 a.C.)[↩]