Wahl: A VERDADE SUBJETIVIDADE, A VERDADE SER, A MULTIPLICIDADE DAS VERDADES

Jean Wahl, As Filosofias da Existência. Trad. I. Lobato e A. Torres.

CAPITULO V – A VERDADE SUBJETIVIDADE, A VERDADE SER, A MULTIPLICIDADE DAS VERDADES

Examinamos o que chamamos as principais categorias das filosofias da existência: em primeiro lugar, existência, ser, transcendência; depois, as categorias relativas ao tempo, possível e projeto, origem, finalmente, agora, situação e instante; em terceiro lugar, escolha e liberdade, nada e angústia, repetição e autenticidade; em quarto lugar, o único, o Outro e a comunicação — e quereríamos falar agora das duas últimas tríades. Uma relativa à verdade, a outra relativa ao paradoxo.

A verdade em Kierkegaard aparece essencialmente como a subjetividade. Veremos em Jaspers uma teoria da multiplicidade das verdades e em Heidegger uma teoria que tenta identificar verdade e ser. Assim, poderemos acompanhar um movimento que vai da verdade subjetividade à verdade ser.

Que quer dizer Kierkegaard por: a verdade é a subjetividade? Segundo Hegel, o escopo do filósofo é identificar-se com o espírito absoluto nas suas encarnações sucessivas, trata-se de percorrer; é o que Hegel faz, na Fenomenologia, e, de uma maneira diferente, na Lógica, as diferentes etapas que percorre o espírito, quer partindo da percepção para chegar à realidade absoluta, quer partindo da ideia abstrata para ir de novo até à realidade absoluta.

Apreender a verdade, para Kierkegaard, é apropriar-se dela, é produzi-la e é ao mesmo tempo ter um interesse infinito por ela. O que domina Kierkegaard é a ideia de uma infinita preocupação por si próprio.

Para Hegel, a verdade é o esforço para seguir as transformações da Ideia, transformações que se fazem pelo mecanismo ou pelo dinamismo da tese, da antítese e da síntese. E de cada vez o que aparece é um momento superior ao momento precedente, o que Hegel chama a verdade do momento precedente. De tal modo que a verdade de um momento do espírito está sempre no momento do espírito que se vai seguir, até que se detenha finalmente perante a totalidade que inclui nela própria todos os momentos e que é a Ideia absoluta. Então ultrapassou-se o tempo, vive-se verdadeiramente a eternidade da Ideia, está-se na filosofia absoluta.

Kierkegaard opõe-se de uma maneira radical a semelhante concepção. Estou num dado momento do tempo, e não se trata para mim de me identificar, de uma maneira que seria, para Kierkegard, sacrilégio; na totalidade dos momentos, devo assumir o meu lugar no tempo. Eu sou um indivíduo finito e não devo tentar tornar-me adequado ao infinito.

Que devo fazer? Devo inclinar e inclinar-me para o que chamarei a verdade. E a verdade, para Kierkegaard, é essencialmente Deus enquanto encarnado, é essencialmente Jesus Cristo na medida em que fcle próprio diz: «Eu sou a verdade.» E quando este homem-Deus que é Jesus, diz: «Eu sou a verdade», apresenta-se-nos como um escândalo”, como um paradoxo, e é nesta tensão que nos devemos colocar para compreender que o infinito se encarnou, isto é, se realizou no finito, é esta tensão que nos faz atingir a verdade, porque a verdade está essencialmente na intensidade da nossa relação com o termo com que estamos em relação. Neste ponto reencontramos essa teoria do como, da qual já tínhamos brevemente falado. Não é o o que, não é num sentido o dogma que é a verdade, é a minha atitude perante o dogma.

Assim, a máxima de Kierkegaard é: «Seja subjetivo, e estará na verdade.»

O pensador subjetivo, diz Kierkegaard, une o eterno e o tempo; ele próprio é união do eterno e do tempo, visto que ele concebe a verdade eterna, mas concebe-a num instante do tempo. Ele próprio é, portanto, um paradoxo.
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A crença, diz-nos Jaspers, é movimento da existência, é «a certeza de ser do amor». Kierkegaard definia-a como voz da divindade, como combate com Deus, e significava com isso o movimento e a afirmação do existente fora das garantias objetivas, agindo a partir da sua origem e de maneira incondicional.

Aliás, esta ideia deve ser completada; há uma dialéctica kierkegaardiana, que faz que o homem essencialmente finito, ao mesmo tempo na verdade e no erro, não possa tornar-se completamente adequado a Deus: ele está na culpa, e é só por este sentimento de culpa que ele poderá ir até à esfera religiosa.

Mas por agora retenhamos, deste primeiro momento da categoria de verdade nas filosofias da existência, que a verdade é subjetividade.

Notemos igualmente que, desde o momento da formação destas teorias, a verdade é igualmente ser. Jesus é ser. Toda a crença é crença no ser.

Aqui, como nos outros domínios da sua filosofia, Jaspers tenta chegar a uma concepção mais geral, integrando de passo a concepção de Kierkegaard. Há, evidentemente, esta verdade tal qual a concebem quer Kierkegaard, quer, às vezes, Nietzsche. Mas há outras formas de verdade. Há a verdade no domínio empírico, há a verdade no domínio científico; são igualmente verdades.

Jaspers mostra que a ideia de verdade, conforme os diferentes domínios em que nos movemos, é diferente, e que há uma luta destas verdades, e que cada um destes domínios só toma o seu verdadeiro valor pela luta contra os outros. O que significa que a verdade subjetividade só tem o seu valor pleno, porque há uma verdade objetividade com a qual de uma certa maneira ela entra em luta.

Assim, teremos sempre, perante a questão da verdade, de escolher em que domínio queremos defini-la, e a teoria de Kierkegaard integra-se por esse ângulo num conjunto mais vasto.

Por outro lado, ele insiste sobre a ligação entre a verdade e o ser: está, às vezes, neste ponto, próximo de Heidegger. A ideia de verdade não pode estar separada da ideia de ser, diz-nos Heidegger. E o erro dos filósofos terem procurado a verdade nos juízos. O juízo traz sempre, diz ele, inspirando-se na teoria fenomenológica de Husserl sobre qualquer coisa diferente do juízo e anterior ao juízo, que é o ser. E é só em relação ao ser que há a verdade no juízo. Consequentemente, da verdade do juízo, que é uma verdade secundária, nós devemos remontar a uma verdade primária, que é a verdade do ser. Heidegger gosta de insistir na palavra pela qual os Gregos designavam a verdade, aletheia, que é composta de “a”, privativo, e de aletheia, que vem do verbo lethein, que tem a mesma raiz que encontramos no nome do rio Lete. Portanto, aletheia é o que não está velado, é o que não está escondido. Refletindo sobre esta palavra aletheia, chegamos à conclusão, diz Heidegger, de que os Gregos tiveram o sentimento que para o homem a verdade é qualquer coisa que está primitivamente num esconderijo, e que é preciso fazer sair do seu esconderijo.

Assim — e tínhamos já visto esta ideia, de um ponto de vista diferente, em Kierkegaard — , o homem está no erro ou na culpa, pela sua própria natureza, na medida em que é finito.

Mas onde está a verdade? Ela está nos sendos. Não está nos juízos, basta revelá-la. É assim que há uma verdade que é idêntica ao ser, que é, na opinião de Heidegger, a luz do ser. Nós estamos na luz da verdade e nas trevas do erro, do vaguear errante.

Portanto, a respeito desta ideia de verdade, podemos ver uma espécie de dialéctica que faz passar da verdade subjetividade, tal como a concebeu Kierkegaard, à verdade ser, tal como a concebe Heidegger, passando pela multiplicidade das verdades, tal como a expõe Jaspers.

Mas não é necessário, por outro lado, opor completamente a teoria de Heidegger e a de Kierkegaard, porque se em Heidegger podemos chegar à ideia de ser, é, apesar de tudo, partindo do Dasein, da existência; é portanto partindo da verdade tal qual a sentimos em nós que podemos ir para a verdade ser. E pela existência que poderemos chegar ao ser.