Somos no mundo, ou seja: as coisas tomam forma, um imenso indivíduo se afirma, cada existência compreende a si mesma e às outras. Tudo o que temos a fazer é reconhecer esses fenômenos, que formam a base de todas as nossas certezas 1.
Esse ponto de partida permite que Merleau-Ponty descarte desde o início o que ele vê como uma segunda “racionalização” disso: seja a “crença em um espírito absoluto” (do idealismo) ou a “crença em um mundo separado de nós” (do realismo completo). Ele responde:
<poesie>A conquista mais importante da fenomenologia é, sem dúvida, ter unido o subjetivismo extremo e o objetivismo extremo em sua noção de mundo ou de racionalidade.A racionalidade é medida exatamente pelas experiências nas quais ela é revelada. Há racionalidade, em outras palavras: as perspectivas se sobrepõem, as percepções são confirmadas, o significado emerge. Mas ela não deve ser separada, transformada em um Espírito absoluto ou em um mundo no sentido realista. O mundo fenomenológico não é puro ser, mas o significado que emerge na interseção de minhas experiências e na interseção de minhas experiências e as dos outros; é, portanto, inseparável da subjetividade e da intersubjetividade, que são unidas pela incorporação de minhas experiências passadas em minhas experiências presentes e das experiências dos outros em minhas próprias experiências… O filósofo tenta pensar sobre o mundo, sobre os outros e sobre si mesmo, e conceber suas relações. Mas o ego meditativo, o ‘espectador imparcial’ (uninteressierter Zuschauer), não se junta a uma racionalidade já dada…
A racionalidade não é um problema (sublinhado pelo autor), não há nenhuma incógnita por trás dela que tenhamos de determinar dedutivamente ou provar indutivamente a partir dela: testemunhamos a todo momento esse prodígio da conexão de experiências, e ninguém sabe melhor do que nós como isso é feito, já que somos esse nó de relações. O mundo e a razão não são um problema; digamos, se você quiser, que eles são misteriosos, mas esse mistério os define… A verdadeira filosofia consiste em aprender a ver o mundo novamente… Tomamos nosso destino em nossas próprias mãos, nos tornamos responsáveis por nossa história por meio da reflexão e, em ambos os casos, é um ato violento que é verificado por meio da prática” 2.
Essa longa citação é esclarecedora. Omitimos esta frase, cujo significado pode causar dificuldade: “o único λόγος que preexiste é o próprio mundo”. O significado pode causar dificuldades, eu digo, e não deve ser entendido — que direito temos então? — como uma recusa a priori de descobrir no mundo e por meio do mundo o que o ponto de partida não nos permite prever, mas que o ponto de chegada talvez imponha.
O mundo não é isto que penso, mas isto que vivo, estou aberto ao mundo, sem dúvida me comunico com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável. ‘Há um mundo’, ou melhor, ‘há o mundo’, desta tese constante de minha vida, jamais posso dar completamente razão. (Op. cit., p. xii)].
A “tese constante da vida” para a qual temos de tentar dar conta e, como diremos, fornecer a hipótese, o fato de ser no mundo coincide para cada um de nós com o fato de ser um “sujeito”: “Posso mudar de ponto de vista, sujeito sempre a ocupar um” (ib. p. 466). E é por isso que veremos mais claramente, quando nos aprofundarmos nesse estudo do “sujeito” em outra encruzilhada com Merleau-Ponty, o quanto — diferentemente do postulado sartreano 3.
“O mundo existe antes de qualquer análise que eu possa fazer dele” 4.
- Phénoménologie de la Perception, Gallimard, 1945, p. 468. O autor fala de “fé primordial” para designar essa certeza de ser-no-mundo (ibid.)[↩]
- Op. cit., p. xv e xvi.[↩]
- Para Merleau-Ponty, o mundo está preso na própria textura do sujeito, e vice-versa. O mundo deixa de ser um espetáculo em si mesmo, e o sujeito, um para-si insular; ele está com o em-si em uma conexão e correlatividade reais. O que Merleau-Ponty critica em Sartre nessas condições é a “noção de consciência como puro poder de significar, como movimento centrífugo sem opacidade, sem inércia, — a noção de um sujeito que é ‘o sol do qual o mundo irradia, o demiurgo de meus objetos puros’” (Structure du comportement, pp. 267 e 268)]. — seu ponto de partida é semelhante ao nosso em um tipo de simplicidade:
Quando volto a mim mesmo, do dogmatismo do senso comum ou do dogmatismo da ciência, não encontro um foco de verdade “intrínseco”, mas um sujeito devotado ao mundo” [[Op. cit., p. v. Ao rejeitar a ideia de um ‘eu’ que seria um ‘foco de verdade intrínseco’, Merleau-Ponty rejeita o cogito idealista. “O mundo não é um objeto cuja lei constitutiva eu possuo em minha própria posse; ele é o meio e o campo de todos os meus pensamentos e todas as minhas percepções explícitas” (ibid., p. v).
Merleau-Ponty tem plena consciência dessa subordinação concreta:
“O real deve ser descrito, não construído ou constituído…. Se a realidade da minha percepção se baseasse apenas na coerência intrínseca das ‘representações’, ela seria sempre hesitante e, entregue às minhas conjunturas prováveis, eu teria a todo momento de desfazer sínteses ilusórias e reintegrar ao real fenômenos aberrantes que eu havia inicialmente excluído. Mas esse não é o caso. A realidade é um tecido sólido; ela não espera por nossos julgamentos para anexar os fenômenos mais surpreendentes ou para rejeitar nossas imaginações mais plausíveis. A percepção não é uma ciência do mundo (grifo meu)… ela é o pano de fundo contra o qual todos os atos se destacam, e é pressuposta por eles” [[Op. cit., p. v.[↩]
- Op. cit., p. iv[↩]