Encontramos a expressão “Pastores do Ser” no conhecido ensaio de Heidegger intitulado Carta sobre o Humanismo, num trecho em que diz não serem os homens os “Senhores do Ser”, mas unicamente seus “Pastores”. O que pretendem significar essas expressões, à primeira vista tão sibilinas, que transparecem uma opção entre o orgulho e a humildade?
Afirmando que nós, homens, somos os pastores de ser e não seus senhores, Heidegger aponta para o fato de que somos e realizamos na vida um papel consignado e outorgado a nós por uma Potência superior. As possibilidades que vamos realizando através da vida e do tempo, através da História, nos são conferidas por um poder transumano, que é uma autêntica Officina Libertatis. A vocação do homem é, pois, a de apascentar o ente que lhe foi entregue sob custódia, vigiando para que o seu rebanho não se perca nos desvãos da inautenticidade e nos despenhadeiros das formas ilegítimas. Esse jogo que podemos e devemos jogar é um jogo proposto por uma força que independente do nosso arbítrio. Se, pelo contrário, fôssemos senhores do Ser, poderíamos decidir livremente acerca de tudo e de todos, organizando o tipo de nossa concepção do mundo e da vida e concentrando em nós mesmos a densidade total do Ser.
O homem, entretanto, não condensa em si o tesouro do Ser, o eu humano não representando a figura definitiva da História e o seu remate final, como queria Hegel. Para esse filósofo, o homem seria aquela verdade cobiçada através de todo o processo histórico e, portanto, a gloriosa e derradeira expressão do processo temporal.
Diferente é o clima e a experiência da vida veiculados pelo enunciado heideggeriano de que somos “os pastores do Ser”. Aqui, o Ser é excêntrico e superabundante em relação ao homem, a sua potência morfogenética excedendo de muito o protagonista temporal hominídeo. Antes do homem e depois do homem, outros sonhos e imagens vitais ocuparam e ocuparão o foco histórico e outros mitos, além do mito humanístico, poderão desfilar pela fresta iluminada de presença a tempo. Toda a corte infinita dos deuses e dos homens é, nessa linha de pensamento, surpreendida em seu amanhecer, florescer e sucumbir, em seu destino governado pela força promotora do Ser, desse Ser que excede as possibilidades humanas, que as instituiu um dia, para um dia também as transcender.