Richard E. Palmer — Hermenêutica
Excertos da tradução em português de Maria Luísa Ribeiro Ferreira
O PROJETO DE SCHLEIERMACHER DE UMA HERMENÊUTICA GERAL
«A hermenêutica como arte da compreensão não existe como uma área geral, apenas existe uma pluralidade de hermenêuticas especializadas.» Esta asserção programática com a qual Schleiermacher abriu as suas conferências de 1819 sobre hermenêutica, enuncia numa frase o seu objectivo fundamental: construir uma hermenêutica geral como arte da compreensão. Essa arte, afirma Schleiermacher, é na sua essência a mesma, seja o texto um documento jurídico, um escrito religioso ou uma obra de arte. É certo que há diferenças entre essas várias espécies de textos, e por essa razão cada disciplina tem as suas ferramentas teóricas para os seus problemas particulares; mas subjacente a essas diferenças há uma unidade fundamental. Os textos exprimem-se numa língua e assim utiliza-se a gramática para encontrar o sentido de uma frase; há uma ideia geral que interatua com a estrutura gramatical para formar o sentido, seja qual for o tipo de documento. Se fossem formulados os princípios de toda a compreensão da linguagem, certamente que incluiriam uma hermenêutica geral. Uma hermenêutica desse tipo poderia servir de base e de centro a toda a hermenêutica «especial».
Mas, diz Schleiermacher, ainda não existe uma hermenêutica desse tipo. Em vez dela, existiriam várias «hermenêuticas» especiais, Em primeiro lugar a filológica, a teológica e a jurídica. E mesmo dentro da hermenêutica filológica, não haveria coerência sistemática. Pelo contrário, Friedrich August Wolf defendera que precisávamos de uma hermenêutica diferente para a história, para a poesia e para os textos religiosos e consequentemente para as subva-riantes dentro de cada uma destas classificações. Para Wolf a hermenêutica era uma coisa muito prática: um corpo de sabedoria para abordar os problemas específicos da interpretação. Há regras e conselhos para os problemas de interpretação mais diversos, talhados para a linguística particular e para as dificuldades históricas levantadas pelos textos antigos em hebreu, em grego e em latim. A hermenêutica era um corpo teórico que ajudava na tarefa de tradução de textos antigos, mas a teoria tinha-se vindo simplesmente a acumular à medida que mais elementos eram considerados importantes na compreensão dos textos antigos. A grande hermenêutica de Ast tinha uma orientação mais filosófica mas ainda procurava ser enciclopédica, baseando-se num idealismo metafísico, inaceitável para Schleiermacher. Faltava ainda a disposição para examinar o acto fundante de toda a hermenêutica: o acto de compreensão, o acto de um ser humano vivo, dotado de sentimentos e intuições.
Em 1799, no seu famoso curso dirigido aos eruditos depredadores da religião, já Schleiermacher tinha negado decisivamente que a metafísica e a moral constituíssem a base do fenômeno religioso. A religião não diz respeito ao homem que vive de acordo com uma ideia racional, mas sim àquele que vive, age e sente a sua situação de criatura dependente de Deus. De modo similar, a hermenêutica foi defendida por Schleiermacher enquanto relacionada com o ser humano concreto, existente e atuante no processo de compreensão do diálogo. Quando começamos pelas condições que pertencem a todo o diálogo, quando nos afastamos do racionalismo, da metafísica e da moral, quando examinamos a situação concreta e atual implicada na compreensão, então arrancamos para uma hermenêutica viável que poderá servir de núcleo central de uma hermenêutica especial, tal como por exemplo a bíblica.
Schleiermacher defendeu que a arte da exploração, que constituíra uma grande parte da teoria hermenêutica, estava fora da hermenêutica. «Logo que a exploração se torna mais do que o exterior da compreensão, torna-se arte de apresentação. Só aquilo a que Ernesti chama subtilitas intelligendi (acuidade da compreensão) pertence genuinamente à hermenêutica? A explicação, em vez de arte da «compreensão» vai transformar-se imperceptivelmente em arte de formulação retórica. No diálogo, uma coisa é a operação de formular e de o transformar em discurso; outra, totalmente diferente, é a operação de compreender aquilo que é dito. Schleiermacher defende que a hermenêutica lida com este último aspecto. Esta distinção fundamental entre falar e compreender constitui a base para uma nova orientação em hermenêutica e abriu caminho a uma base sistemática para a hermenêutica na teoria d» compreensão. Se a hermenêutica já não se dedica essencialmente a clarificar os vários problemas práticos na interpretação dos diferentes tipos de texto, então poderá tomar o ato de compreensão como o seu verdadeiro ponto de partida: em Schleiermacher, a hermenêutica transforma-se verdadeiramente numa «arte da compreensão».
E assim Schleiermacher coloca esta questão geral como ponto de partida da sua hermenêutica: como é que toda ou qualquer expressão linguística, falada ou escrita, é «compreendida»? A situação de compreensão pertence a uma relação de diálogo. Em todas as situações desse tipo há uma pessoa que fala, que constrói uma frase com sentido, e há uma pessoa que ouve. O ouvinte recebe uma série de meras palavras, e subitamente, através de um processo misterioso, consegue adivinhar o seu sentido. Este processo misterioso, um processo de adivinhação, é o processo hermenêutico. É o verdadeiro lugar da hermenêutica. A hermenêutica é a arte de ouvir. Voltamo-nos agora para alguns princípios desta arte ou processo.