Do que dissemos sobre a autenticidade do filosofar infere-se facilmente que até mesmo a filosofia de nossos dias, a fenomenologia existencial, não pode ser chamada a filosofia. Também ela precisa ser superada, visto a contínua possibilidade de se exprimir melhor o último sentido da vida e do real.1 Não queremos, todavia, adivinhar o futuro da filosofia. É bom, em todo caso, lançar um olhar sobre o passado recente da fenomenologia existencial, para que o leitor seja de certa maneira orientado também historicamente.
(29) Kierkegaard foi o fundador do existencialismo2 e dificilmente poderia ser chamado fenomenólogo. Husserl lançou a fenomenologia e não é um existencialista. Isso significa que houve um tempo em que se tinha de distinguir do existencialismo a fenomenologia, enquanto que agora se fala da fenomenologia existencial ou do existencialismo fenomenológico. Em que consiste, pois, a diversidade entre o existencialismo e a fenomenologia e como surgiu o movimento de união do pensamento existencial-fenomenológico ?
A despeito das diferenças no pensamento de Kierkegaard, de um lado, e de Husserl, de outro, existe apesar de tudo certa concordância entre ambos. Esta talvez se mostre melhor na resistência dos dois pensadores ao atomismo ou elementarismo a respeito do homem e do mundo. O homem não é qualquer coisa igual a um átomo !
O modo, porém, como tal resistência se desenvolve difere: Kierkegaard fala sobre o homem, ao passo que Husserl se limita praticamente à consciência ou conhecimento.
Kierkegaard concebe o homem como existência, como sujeito-em-relação-a-Deus. Não é um átomo auto-suficiente e espiritual, mas como sujeito só é autenticamente ele mesmo em sua relação ao Deus da Revelação. Na concepção de Kierkegaard, entretanto, a existência é de todo original e irrepetível, radicalmente pessoal e única. Opinião que não deixa de ter consequências, pois que Kierkegaard frisa a unicidade e “excepcionalidade” da existência, em detrimento do aspecto da universalidade no conhecimento (exigida por toda “ciência”) quando se trata do pensamento acerca do homem. Desde que se acentua exclusivamente a unicidade e excepcionalidade da existência, cumpre admitir-se como consequência que tudo quanto um pensador fala sobre a existência não se aplica, por princípio, a nenhuma outra realidade a não ser à existência do próprio pensador, não valendo, em tese, de outras coisas. O pensamento de Kierkegaard é consciente e deliberadamente “anticientífico”.3 Em princípio, não pode tencionar ir além do monólogo, da “meditação solitária”.4
(30) Sem dúvida, há algo de sedutor nessa concepção acerca da natureza da filosofia. Se no passado se recusava o existencialismo, entre outras coisas, por não ser uma ciência nem ser capaz de se tornar uma delas, os que se deixam inspirar por Kierkegaard responderão resolutamente com a observação de que o existencialismo não precisa ser uma ciência. Quase sempre, porém, a rejeição do predicado “científico” parece repousar numa certa aversão a determinada concepção acerca da cientificidade do pensamento sobre o homem. Na ideia de Hegel, o qual figura na obra de Kierkegaard como a ovelha negra, bem como no cientismo, de tal modo se fala “cientificamente” do homem, que desaparece de todo a originalidade, irrepetibilidade, unicidade e caráter excepcional da subjetividade humana.5 Entretanto, trata-se de uma linguagem julgada “científica” por excelência. Em certo sentido, pois, é óbvio que, como reação, se quis evitar a qualificação citada.
Com isso fica sem solução a dificuldade. Se há determinada concepção do pensamento científico sobre o homem que deve ser rejeitada, não se vê ainda claramente que o filosofar sobre o homem não possa e não deva ser, em certo sentido, “científico”. Quem filosofa acerca do homem não pode fugir de todo a filosofar sobre o homem: precisa de juízos universais e necessários para exprimir as estruturas universais e necessárias do ser-homem. Essa concepção levou alguns a sustentar que talvez se careça de escolher entre o existir autêntico e o existencialismo.6 Aquele que opta pelo existencialismo, deve chegar a falar das estruturas universais do ser-homem. Quem escolhe o autêntico existir tem de renunciar ao existencialismo como doutrina universal acerca do homem.7
As dificuldades de que acabamos de falar mal existem para quem se orienta exclusivamente pelo pensamento de Hus-serl. Tendo sido a princípio matemático e físico, Husserl, como Descartes, irritou-se com as diferenças de opiniões e confusão de linguagem no terreno da filosofia.8 Para ele a filosofia (31) ainda não é ciência,9 pelo que lançou sua fenomenologia como tentativa para tornar também a filosofia uma ciência de rigor. No entanto, Husserl não pretende que a “cientificidade” da filosofia deva ser a mesma que a das ciências positivas. Ao contrário.10 A filosofia não pode deixar que, p. ex., a física lhe prescreva seus métodos, ou orientar-se, para garantir sua própria “cientificidade”, pela física.11 A filosofia não é uma ciência positiva.
Tal coisa, porém, não significa para Husserl que a filosofia em nenhum sentido possa e deva ser chamada “científica”. Não será científica de uma maneira bem determinada, mas fica excluída a “cientificidade” a seu modo, porque até a filosofia tende sempre a uma verdade intersubjetiva por princípio e objetivamente universal.
Para alcançar sua finalidade a respeito da filosofia, Husserl investiga o caráter da consciência humana ou conhecimento. Conceitua a consciência (o conhecimento), como intencionalidade, como direção àquilo que não é a própria consciência.
A concepção husserliana da consciência ou conhecimento como intencionalidade evidencia uma inegável semelhança com a que Kierkegaard tem do homem como existência. Ambos voltam-se contra a ideia atomística do homem e sua consciência; mas Husserl insiste nos problemas de teoria do conhecimento, enquanto Kierkegaard acentua as questões teológico-antropológicas. Existencialismo e fenomenologia estavam ainda distintos.
Não durou, contudo, muito tempo tal situação. No Sein und Zeit (Ser e Tempo) de Heidegger juntaram-se o existencialismo de Kierkegaard e a fenomenologia de Husserl para servir de base à filosofia que se chama hoje geralmente “fenomenologia existencial”. Em Heidegger encontramos uma filosofia do homem, que não mergulha nas ilusões do idealismo ou do positivismo. Sob o influxo da teoria do conhecimento da fenomenologia e do ideal fenomenológico de “ciência”, o existencialismo abandonou sua posição anticientífica, e a fenomenologia, como teoria do conhecimento, enriqueceu-se por tomar (32) emprestados numerosos temas ao existencialismo de Kierkegaard, a fim de se desdobrar numa filosofia do homem.12 Assim surgiu o movimento de união do pensamento fenomeno-lógico-existencial, de que são corifeus sobretudo Heidegger, Sartre (ainda que não em todos os sentidos), Merleau-Ponty e a Escola de Lovaina.
Entretanto, a atitude anticientífica do existencialismo foi continuada por Karl Jaspers e Gabriel Marcel,13 com o que ambos se colocaram mais ou menos fora do aludido movimento, apesar de muitos pontos de contato.
Nesta obra queremos fazer o leitor experimentar ao vivo o significado do filosofar. Despertando-o pelo próprio filosofar é possível “dizer” o que é filosofar e o enorme valor do pensamento “inútil” do filósofo. Estamos convencidos de que a filosofia não deve faltar no desenvolvimento de nossa moderna sociedade. O novo homem está ameaçado de ser vítima de uma mentalidade tecnocrática, mas à medida que tal processo avança e se alastra, mais dificuldade tem ele de consentir em sua existência. Que é o homem ? — eis a primeira questão que se impõe.
- “Era a falsa ideia, segundo a qual o posteriormente melhor aboliria o que precede. Este serviria de degrau para o progresso, conservando um interesse puramente histórico. O novo como tal passa então, falsamente, a valer como verdadeiro. Com a descoberta dele a gente se sente no ápice da história”. K. Jaspers, Der philosophische Glaube, München, 1948, p. 129.[↩]
- Abstraímos aqui da distinção feita por alguns entre o existencialismo e a filosofia da existência desde que Sartre julgou poder e dever identificar existencialismo e ateísmo.[↩]
- A. de Waelhens, Kierkegaard en de hedendaagse existentialisten, em: Tijdschrift voor Philosophie (1939), pp. 827-851.[↩]
- “Trata-se de saber se a existência não é algo que deva ser reservado à meditação solitára”. J. Wahl, Petite histoire de l’existentialisme, Paris, 1947, p. 61.[↩]
- J. Peters, Hedendaagse visies op den Mens, Gesprekken op Drakenburgh, Heerlen, s. d., pp. 228-230.[↩]
- “Talvez se deva escolher entre o existencialismo e a existência”. J. Wahl, op. cit., p. 61.[↩]
- “Restará perguntar se a busca dos existenciais e a pesquisa do ser é compatível com a afirmação da existência”. J. Wahl, op. cit., p. 43.[↩]
- “(A filosofia) não somente dispõe de um sistema doutrinal inacabado e incompleto nos pormenores, mas até não dispõe de sistema algum. Tudo nela é discutível, toda tomada de posição depende da convicção individual, da opinião da escola, do ponto de vista”. E. Husserl, Philosophie als strenge Wissenschaft, em: Logos I (1910-1911), p. 291.[↩]
- E. Husserl, art. cit., p. 290.[↩]
- “A filosofia, porém, está numa dimensão completamente nova. Necessita de pontos de partida totalmente novos e de um método todo novo, o que a distingue, por princípio, de qualquer ciência ‘natural’”. E. Husserl, Die Idee der Phänomenologie, Husserliana II, p. 14.[↩]
- E. Husserl, Die Idee der Phänomenologie, pp. 24-26.[↩]
- Naturalmente não negamos que a intervenção de Heidegger representa mais do que dissemos. Em particular, foi por Heidegger que a fenomenologia abriu caminho para a metafísica e depois para a ‘transcendência’ da metafísica.[↩]
- RI, p. 193.[↩]