Haar (1990:154-157) – pensar e questionar

Alves

Irrupção no ser, vigilância que rememora, dizer simples — estaremos a esquecer com esta tripla definição que o exercício do pensamento, para quem quer que tenha lido um pouco de Heidegger, manifesta-se antes de mais como um inlaçável questionamento? Da primeira frase de SZ: «A questão do ser caiu hoje em dia no esquecimento»… até à célebre última palavra do ensaio sobre «a questão da Técnica»: «O questionamento é a devoção do pensamento», parece que Denken e Fragen experimentam-se e determinam-se um ao outro. O termo «devoção» indica o coração mais íntimo, a fonte essencial do pensamento: durante o tempo em que se mantém salvo o questionamento, o pensamento permanece vivo e aguarda um futuro. Mas salvo não quer dizer santo, nem sagrado. Esta brusca inflexão religiosa traduz talvez uma nostalgia reprimida.

Mas o que é questionar? Donde nos vêm as questões e o poder de questionar? Was ist Metaphysik? Was heisst Denken?, Die frage nach dem Ding, Zur Seins frage, etc…

A origem da questão é dupla, só há no fundo duas questões para Heidegger. Por um lado, a tradição metafísica pergunta: «o que é o ente enquanto tal?»; é a questão do ti esti, a da «essência», a Leitfrage, «questão condutora» que atravessa toda a História do Ser precisamente como um fio condutor. Por outro lado, a questão provém do próprio ser: o que havia entrevisto o SZ, dizendo que o Dasein é o ente cujo ser é «em questão» no seu ser, ou que através dele o sentido do ser vem a ser questionado. Esta obra caracterizava a sua própria tarefa como «elaboração concreta da questão do sentido do ser»: concreta quer dizer em e pelo Dasein. A segunda questão, «a questão fundamental», a Grundfrage: «que é feito do ser como tal?», cava um abismo sob toda a fundação, pois que o ser não é uma essência, uma razão ou um fundamento, o retorno ao ser não permite mais responder com uma «solução» à questão «porquê o ente?», não permite mais a dedução transcendental. Ao contrário da questão que assegura a essência, a Grundfrage, abrindo a abertura do aberto, coloca o homem e todo o ente incessantemente em suspenso e em questão. Ora este pôr em questão não depende duma decisão do pensamento, pois que resulta ao mesmo tempo da Ereignis e do termo da metafísica. A actividade do pensamento consiste em elaborar a questão, em interrogar a questão, mas não poderá determiná-la de maneira completamente inicial, como se a pusesse livre e deliberadamente, como se a desencadeasse e a dominasse à sua vontade; «tomando-a em consideração» por assim dizer, como se a pudesse não levantar. A «primazia» e a «necessidade» da questão do ser são de tal modo incontornáveis, de tal modo anteriores a toda a lógica, e a toda a vontade, que a questão está desde sempre já posta, mas só implicitamente, quando começamos a pensar-falar. Ela coloca-se na e pela língua, por meio da compreensão do ser que veicula a língua, pelo apelo e exigência que encobre a pequena palavra «é». O ser é a preposição da sua questão. Esta espontaneidade da Grundfrage testemunha do poder do ser sobre a língua. O ser fala e questiona-nos ele próprio através da língua, pelo menos se o soubermos escutar suficientemente.

É por isso que não se trata de modo nenhum duma palinódia quando, muito mais tarde no seu itinerário, Heidegger, em Unterwegs zur Sprache (1959), parece relativizar radicalmente a instância do questionamento: o questionamento não é o verdadeiro gesto do pensamento, mas — a escuta da palavra que dirige o que deve vir à questão». Noutros termos, podemos apenas estar atentos à questão ou às questões que se colocam. Qualquer verdadeira questão coloca-se com efeito a si mesma antes que nós a coloquemos. Nós apenas a despertamos. Um «problema» pelo contrário é o que nós construímos com todas as peças, o mais frequentemente para nos proteger duma verdadeira questão como por trás de um escudo (problema significa em grego armadura, barreira, baluarte). «Um problema é uma questão cuja resposta é deixada em branco», dizia Leibniz. O pensamento que obedece ao princípio da razão, o pensamento calculante, questiona também, mas preocupa-se antes, como é usual dizer-se, com «os dados do problema». Ele dá-se sobretudo os limites do seu questionamento. Porque sabe por antecipação que encontrará uma causa, uma razão suficiente, uma razão de ser que possa ter igual razão. Pelo contrário, o questionamento do pensamento meditante não é apenas Grund-legend, não é um questionamento no sentido duma interrogação que coloca e exige por antecipação uma razão primeira e razões últimas. Heidegger realiza aqui o voto que Husserl não pôde realizar por falta de radicalidade: a ausência completa de pressupostos. Que o pensamento seja «piedoso», fromm, isso significa que a referida Unterwegs, está «submetida (fugsam) ao que o pensamento tem de pensar», a saber, a língua. Esta submissão, esta obediência às «próprias coisas que daqui em diante contêm e apresentam as próprias palavras, esta «iniciativa» da língua antecipa todo o questionamento, como o primeiro momento do pensamento, momento que não poderia ser de confiança por parte daquele que interroga, ou que pede uma explicação. Embora fiel à confusão, ao pavor do nosso crepúsculo, aos quais responde sempre inadequadamente o questionamento — sem poder nunca anulá-los — nenhum pensamento na nossa época se pode identificar com as questões e satisfazer-se com elas ou nelas. Simples porta-voz do ser, o pensamento vê-se despojado das suas questões.

A que extremos de desnudamento se verá a essência do homem reduzida, examinada agora a partir da relação na qual o ser a detém, ou através da sua História e, sobretudo, do seu fim?

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