Amor (Marion, JLMPE)

(…) Porque é que o amor é espalhado aos ventos, porque é que lhe é negada uma racionalidade erótica, porque é que é enquadrado no horizonte do ser? A resposta não está longe: porque o amor é definido como uma paixão e, portanto, como uma modalidade derivada, ou mesmo opcional, do “sujeito”, ele próprio definido pelo exercício de uma racionalidade exclusivamente apropriada aos objetos e aos entes, e que, ao pensar, é originária. Ego cogito, ego sum — em outras palavras, uma vez que sou um ego, um ego essencialmente cogitans, que pensa principalmente ordenando e medindo objetos, então o acontecimento erótico nunca me acontecerá a não ser como uma derivação secundária, ou mesmo como uma perturbação lamentável. E, de fato, pensamos mais frequentemente em nós próprios como um tal ego, um ente que cogita objetos que podem ser ordenados e medidos, de modo que os nossos acontecimentos eróticos não são vistos senão como acidentes incalculáveis e desordenados, alegremente marginalizados, ou mesmo opcionais, tão prejudiciais são para o exercício claro desta figura de pensamento. As nossas negações do ego cogito — reiteradas por toda a metafísica recente — não provam o contrário, apenas traem a nossa dificuldade em nos libertarmos deste paradigma, odiado porque ele ainda nos obceca. Concluamos então que, a partir deste ego cogito, o acontecimento do amor não tem mais razão de ser do que a disposição erótica tem legitimidade; ou que o ego cogito só se estabelece em oposição à instância erótica e reprimindo-a.

A prova desta repressão está na definição que Descartes dá do ego: “Ego sum res cogitans, id est dubitans, affirmans, negans, pauca intelligens, multa ignorans, volens, nolens, imaginans quoque et sentiens” (A. T. VII, p. 34, 18-21); por outras palavras: sou uma coisa pensante, isto é, que duvida, afirma, nega, ouve poucas coisas, ignora muitas, quer, não quer, imagina e até sente. Muito bem, exceto que se segue, por omissão, que já não é suposto eu amar ou odiar; melhor ainda, que sou tal que não tenho de amar nem odiar, pelo menos numa primeira fase. Amar não pertenceria aos modos primários do pensamento e, portanto, não determina a essência mais original do ego. Como ego cogito, o homem pensa, mas não ama, pelo menos não originalmente. No entanto, a evidência mais incontestável — a evidência que engloba todas as outras, que governa o nosso tempo e a nossa vida do princípio ao fim, e que nos penetra em todos os momentos intermédios — atesta que, pelo contrário, na medida em que nos descobrimos a nós próprios, estamos sempre já envolvidos no tom de uma disposição erótica — amor ou ódio, infelicidade ou felicidade, prazer ou sofrimento, esperança ou desespero, solidão ou comunhão — e que nunca podemos pretender, sem mentir a nós próprios, alcançar uma neutralidade erótica fundamental. Além disso, quem se esforçaria por alcançar uma ataraxia inacessível, quem a reivindicaria e se vangloriaria dela, se não se sentisse antes de mais e sempre trabalhado, transfixado e obcecado por tons de amor? Pelo contrário, o homem revela-se a si próprio através da modalidade original e radical do erótico. O homem ama — e isso distingue-o de todos os outros seres finitos, exceto dos anjos. O homem não se define nem pelo logos nem pelo ser que está dentro dele, mas pelo fato de amar (ou odiar), quer queira quer não. Neste mundo, só o homem ama, porque os animais e os computadores pensam à sua maneira, tão bem como o homem, se não melhor do que ele; mas não se pode dizer que amam. O homem ama — o animal que ama. O que a definição cartesiana do ego omite deve chocar-nos como uma falha monstruosa na descrição do fenómeno que é, no entanto, o mais próximo, o mais acessível — aquilo que eu sou para mim mesmo. Além disso, o fato de, de todos os alegados erros de que Descartes é acusado, apenas este — o seu único erro, sem dúvida — ter permanecido despercebido durante quase quatro séculos diz mais do que qualquer outra coisa sobre a cegueira erótica da metafísica.

(JLMPE)