Descartes viveu num tempo em que a filosofia escolástica decaíra, chegando a uma deplorável inautenticidade de pensamento. Terminado o curso do célebre colégio jesuítico de La Flèche, teve de reconhecer que a única vantagem da busca do conhecimento foi a sempre crescente consciência de sua ignorância. Verificou que na filosofia nada estava decidido, não havendo coisa alguma sobre que os filósofos não discordassem entre si. Visto, porém, que as inúmeras opiniões divergentes foram defendidas por pensadores exímios, Descartes não julgava poder sair-se melhor seguindo os caminhos trilhados por eles. Assim que pôde libertar-se do ensino dos mestres, resolveu não ambicionar outro conhecimento senão o encontrado em si mesmo e no grande livro do mundo.
Depois de alguns anos em experiências, resolveu usar a força de seu espírito a fim de investigar o caminho por meio do qual pudesse adquirir a verdade e a certeza. Nunca abandonara a esperança de encontrar esse caminho, pois teve sempre diante dos olhos o exemplo da matemática. Admirava-se de que, sendo os fundamentos da matemática tão sólidos e firmes, nada ainda se construíra de mais alto sobre eles. Descartes juntar-se-ia de bom grado àqueles que eram menos capazes que os outros de distinguir o verdadeiro do falso, a fim de se justificarem, dada a sua incapacidade, por seguir simplesmente a opinião dos outros, o que convém aos menos dotados. Mas sua “infelicidade” foi a de ter sido ensinado por mais do que um professor. Seus mestres se contradiziam, o que o obrigou a tomar por si mesmo a iniciativa.
Chegou assim à suspeita de que talvez fosse possível empregar no conhecimento humano, em toda a sua amplitude, o método da matemática, com a certeza que lhe é inerente.1 Na tradição em que o filósofo tinha sido educado, o método dedutivo era comum. Esse método, julgava ele, servia de certo modo para ordenar os conhecimentos já adquiridos, mas não para obter novos. Na matemática, porém, adquire-se um novo conhecimento, sendo consequentemente seu método não o dedutivo, mas o analítico. Partindo de alguns axiomas muito t simples, a matemática procede, por análise, à evidência das proposições contidas nos axiomas. Descartes supunha ser possível construir assim todo o edifício do conhecimento humano, desde que seja obra de uma só pessoa. Julgava dever essa ideia a uma inspiração sobrenatural e dedicou toda a sua vida a construir essa “ciência admirável”, a mathesis universalis.
- “Esses longos encadeamentos de raciocínio simplicíssimos e fáceis, que os geômetras costumam empregar para chegar a suas mais difíceis demonstrações, haviam-me dado ocasião de supor que todas as coisas cognoscíveis pelo homem se seguem do mesmo modo. .. não podendo existir coisas tão afastadas a que afinal não se chegue, nem tão ocultas que não se descubram”. Discours, p. 19.[↩]