A filosofia existencial, filha do tédio e neta do espanto, procura descobrir, pela reflexão, a diferença ontológica entre o mundo das coisas e o mundo dos instrumentos. Heidegger diz que as coisas são nossa condição, e os instrumentos nossas testemunhas. Trata-se de um pensamento informado pela língua alemã e dificilmente pensável em português. “Coisas” em alemão são “Dinge” e “condição” é “Bedingung”. “Instrumentos” em alemão são “Zeug” e “testemunhas” são “Zeugen”. Embora não seja possível traduzir a análise heideggeriana, é possível aproveitar-se dela para pensamentos portugueses independentes. É claro que a qualidade de ser das coisas é diferente da qualidade de ser dos instrumentos. As coisas surgem do fundo escuro do nado, são coisas justamente por não serem nada. Mas o nada faz com que sejam coisas as coisas, porque lhes serve de pano de fundo e as faz resplandecer em seus contornos. As coisas são os meteoros do nada que se precipitam sobre o campo gravitacional da existência para realizar-se. São os mensageiros (angeloi) do nada, e, como diz Rilke, “todo anjo é terrível”. Toda coisa arrasta consigo o nada do qual advêm, toda coisa rasga a plenitude do ser e abre uma fenda para o nada. Toda coisa revela o nada e é por isto que toda coisa é espantosa. O instrumento é a coisa domesticada. É uma coisa apreendida, compreendida e ultrapassada pelo homem, uma coisa descoisificada. O que aconteceu no processo dessa transformação é a retirada da capa do nada que envolve a coisa, e a integração do instrumento na plenitude do ser é a desmistificação da coisa. O instrumento está integrado em nossa existência, não é misterioso. O instrumento está cheio de nós e “nós estamos cheios de instrumentos”. Ao invés de rasgar uma abertura para o nada, como o faz a coisa, o instrumento forma uma muralha contra o nada e tapa a nossa visão do nada. E é justamente essa plenitude do mundo instrumental, este “estar cheio”, que nos causa nojo. Realmente é difícil compreender por que não nos matamos nesse mundo.
(FLUSSER, V. Da Religiosidade. A literatura e o senso de realidade. São Paulo: Annablume, 2004)