Malabou (2004:14-16) – De uma discrição intraduzível

Essa encruzilhada, o recurso de mudança no e do pensamento heideggeriano, surpreendentemente nunca foi estudada. Embora a tríade W, W, V aborde o essencial — a relação à ser, à ente, à Dasein, a Deus, à linguagem, à metafísica — ainda não foi objeto de uma análise temática.

É verdade que Heidegger não especifica em nenhum lugar o significado de Wandel, Wandlung e Verwandlung. Frequentemente usa os três termos no mesmo parágrafo, ou até mesmo na mesma frase, sem distingui-los ou especificar seu escopo. Nunca os submeteu a uma pesquisa etimológica ou a uma tradução cuidadosa. Nenhum recurso ao alto alemão, nenhuma derivação, nenhuma interpretação. Embora o filósofo use constantemente essas palavras, não parece investir nelas. Os nomes da mudança nunca compartilham o destino glorioso das “decisões históricas”. Wandel, Wandlung, Verwandlung continuam sendo palavras comuns em toda a obra. De forma perturbadora, elas parecem estar a uma distância respeitosa tanto dos conceitos técnicos tradicionais de mudança (Änderung, Veränderung, Werden — tornar-se) quanto das mudanças de um novo tempo prometidas pelo “outro pensamento”: o ponto de virada (Kehre), isto que se põe em jogo (das Zuspiel), o salto (Sprung)…1

Essa não-tecnicidade ou regime hipocategorial de W, W, V sem dúvida explica por que os tradutores não dão atenção especial à tríade. Eles se comportam em relação a ela de uma maneira perfeitamente tranquila, como se estivessem livres de qualquer preocupação com a precisão. Em Os Conceitos Fundamentais da Metafísica (GA29-30), por exemplo, o termo Verwandlung é traduzido ora como “transformação”, ora como “mutação”, ora como “metamorfose”, ora como “modificação”. Em “Da Essência da Verdade” (Da essência da verdade) (GA9), Wandlung é traduzido às vezes como “revolução”, às vezes como “mudança”, às vezes como “muda”, sem nunca ser explicado ou justificado. Como veremos com muita frequência, não há preocupação com a unidade na tradução das três noções da tríade, seja dentro do mesmo texto ou de um tradutor para outro.2

Essa imprecisão é fácil de entender. Não é mais fácil estabelecer uma distinção rigorosa entre Wandel, Wandlung e Verwandlung em alemão do que deixar clara a diferença entre changement e transformation, ou ainda entre mue, mutation ou métamorphose em francês. Por outro lado, qualquer tentativa de padronizar a tradução da tríade produz resultados altamente questionáveis. Isso pode ser visto, por exemplo, na tradução americana de Beiträge zur Philosophie — Contribuições à Filosofia (GA65) — na qual as três noções (W, W, V) são todas traduzidas como “transformação”3.

A questão aqui não é acusar os tradutores, mas ficar espantado com o fato de eles não terem detectado nem notado essa intraduzibilidade por padrão, de não terem tentado dar uma olhada mais de perto nesse tipo de polvo textual que se recusa a ser capturado e que diz, à sua maneira, entre a covardia e a rigidez, silenciosamente, mas com muita certeza, mantendo distância dos principais filosofemas, o que, no entanto, acontece com os principais filosofemas: eles mudam.

[MALABOU, Catherine. Le change Heidegger: du fantastique en philosophie. Paris: Léo Scheer, 2004]
  1. “Das Zuspiel” e “Der Sprung” são os títulos da terceira e quarta seções (ou “Fügungen”) do Beiträge zur Philosophie. Vom Ereignis, GA65.[]
  2. É voluntariamente e ciente de que essa decisão é arbitrária que escolherei, por uma questão de unidade, traduzir, ao longo do presente trabalho, “Wandel” por “changement”, “Wandlung” por “transformation”, “Verwandlung” por “métamorphose”. Indicarei esses termos entre colchetes toda vez que citar uma tradução francesa existente de Heidegger, além do termo escolhido pelo tradutor, para destacar melhor as diferenças de um tradutor para outro ou as diferenças de tradução dentro do mesmo texto.[]
  3. Contributions to Philosophy (From Enowning). Tr. américaine Parvis Emad et Kenneth Maly, Indiana University Press, Bloomington-Indianapolis, 1999.[]