A experiência de que os mortos caem, enquanto nós continuamos a evoluir no tempo que para nós continua, é, no fundo, um sentimento da propulsividade de nossa vontade e desejo vital, que vai projetando novos tempos e novos horizontes para o nosso comportamento vital. O tempo é uma forma ativa. Como já havia notado Guyau, “temos que desejar, temos que querer, temos que estender a mão e caminhar, para criar o futuro. O porvir não é o que vem ao nosso encontro, mas aquilo para o qual vamos”. O abandono dos mortos é o reflexo (35) dessa ininterrupta transcendência de nossa órbita vital, que vai deixando tudo para trás, numa volubilidade inexorável e numa impaciência de se atardar em alguma configuração particular. Tanto assim, que qualquer solidariedade com os mortos se traduz numa negação da vida e do mundo, tal como se manifesta no crepe negro do luto e nesse anseio de alguns ao conservarem a habitação e os objetos do morto tal com ele os deixou, e que acabam por ser envolvidos por essa atmosfera de morte. Quando seguimos, desolados, o morrer de uma pessoa amada, depois da crise, da solidão e da ruptura, sentimos que o mundo clama outra vez por nós e somos impelidos outra vez para o seu círculo. A luta que então se trava em nosso íntimo entre a lembrança do nosso passado e os novos apelos da vida expressa essa dualidade trágica entre a morte e a vida, o que passou e o que virá. A nossa natureza está no movimento, é em si atividade e superação; eis por que, em suas próprias raízes, se revolta contra qualquer confinamento e determinação, contra qualquer ensimesmamento definitivo com os mortos ou com a morte. Essa luta trágica entre fidelidade ao passado e a pessoa do morto e os novos anseios da vida é uma ocorrência constante na experiência da morte.
Ferreira da Silva (2009:35-36) – dualidade trágica vida-morte
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