Estas denominações não são arbitrárias. Nelas fala aquilo que aqui já não se pode mostrar, a experiência grega fundamental do ser do ente no sentido da presença [Anwesenheit]. Mas, mediante estas determinações, é fundamentada a concepção, desde então tornada canônica, da coisidade das coisas, implantando-se a concepção ocidental do ser do ente. Ela começa com a recepção das palavras gregas no pensamento romano-latino. ὑποκείμενον [hypokeimenon] torna-se subiectum, ύπόστασις [hypostasis] torna-se substantia; συμβεβηκός [symbebekos] torna-se accidens. A tradução dos nomes gregos para a língua latina não é, de modo nenhum, um acontecimento sem consequências, como ainda nos nossos dias se julga ser. Pelo contrário: atrás da tradução [Übersetzung] aparentemente literal e, portanto, que preserva [o sentido], encobre-se um transpor [Übersetzen] da experiência grega para um outro modo de pensar. O pensamento romano toma posse das palavras gregas sem uma experiência igualmente originária que corresponda àquilo que elas dizem, sem a palavra grega. O desterro [Bodenlosigkeit – falta de solo] do pensamento ocidental começa com esta tradução. [GA5BD:15-16]
Cada tentativa de tradução “literal” de tais palavras fundamentais como “verdade”, “ser”, “aparência” etc. logo alcança o âmbito de uma intenção que, essencialmente, ultrapassa a formação de palavras e o uso literal de tais palavras. Podemos avaliá-lo mais cedo e de modo mais sério se refletirmos sobre o que seja “traduzir”. Inicialmente, apreendemos este processo como algo externo, técnico-filológico. Dizemos, então, ser o “traduzir” a transposição de uma língua para outra, da língua estrangeira para a língua materna ou também o contrário. Entretanto, temos dificuldade de entender que, constantemente, já estamos traduzindo nossa própria língua, a língua materna, para sua palavra própria, genuína. Falar e dizer é, em si, um traduzir, cuja essência não pode de forma alguma consistir em duas situações, onde as palavras que transpõem e as palavras transpostas pertençam a linguagens diversas. Em cada diálogo e em cada solilóquio vige um traduzir originário. Nesse caso, não pensamos apenas no processo, no qual substituímos uma maneira de falar por uma outra da mesma linguagem, e nos servimos da “paráfrase”. A mudança na escolha de palavras já é a consequência de uma transposição, para nós, numa outra verdade e clareza, ou também, numa interrogação [Fragwürdigkeit]. Este transpor pode se realizar sem que a expressão linguística se altere. A poesia de um poeta e o tratado de um pensador estão em sua palavra própria, singular, única. Eles nos obrigam a perceber essa palavra, sempre de novo, como se a ouvíssemos pela primeira vez. A assim chamada tradução e paráfrase são subsequentes e seguem tão-somente a transposição de todo o nosso ser para dentro do âmbito de uma verdade transformada. Somente se já nos deixamos apropriar por esta transposição, nos encontramos no cuidado pela palavra. Só com base na atenção, assim fundada diante da linguagem, podemos assumir a tarefa, em geral mais fácil e mais limitada, de traduzir a palavra estrangeira para nossa própria linguagem. [28]
Mas a tarefa mais difícil é sempre a tradução da própria linguagem para sua palavra mais própria. Assim, por exemplo, a tradução da palavra de um pensador alemão para a linguagem alemã é, por isso, especialmente difícil. Reina, aqui, o tenaz prejuízo de que nós, por falarmos alemão, compreendemos imediatamente a palavra alemã, pois ela pertence, acima de tudo, à nossa própria linguagem, enquanto, pelo contrário, para traduzir uma palavra grega necessitamos, em primeiro lugar, aprender essa língua estrangeira. Não podemos discutir, aqui, de um modo aprofundado, em que extensão e por qual razão todo o diálogo e toda a fala é sempre uma tradução originária no interior da própria linguagem, precisamente, o que significa “traduzir”. No curso de nossa preleção introdutória sobre a aletheia haverá, talvez, oportunidade de experimentar por vezes algo disso. [GA54SMW:28-29]
Dentro do possível, esta e as demais traduções devem ser “fiéis à palavra”. Ser “fiel à palavra” é bem diferente de ser “literal”. Nas traduções meramente literais, as palavras isoladas justapõem-se lexicamente, de maneira quase mecânica. Mas simples palavras ainda não são palavras. Se, no entanto, a tradução pretende ser não apenas literal, mas fiel à palavra, é a partir da fidelidade já [61] dominante na unidade da palavra, isto é, na totalidade da sentença, que as palavras devem experimentar sua força de nomeação e conjunção. Toda tradução é, porém, um recurso provisório. Sendo a necessidade restrita, o recurso pode remediar todas as necessidades, como acontece, por exemplo, na tradução de papéis comerciais. Nesse caso, ambos os lados entendem de que se trata. Talvez se entenda até bem demais. No caso da tradução das palavras de Heráclito, a necessidade é grande. Traduzir é aqui tra-duzir para uma outra margem praticamente desconhecida, que se acha do outro lado de um rio muito largo. Aqui é muito fácil errar, e na maior parte das vezes a errância acaba em naufrágio. Nessa dimensão todas as traduções são ou muito ou pouco ruins. Ruins são sempre. As traduções aqui ensaiadas não fogem a esse julgamento. No âmbito do entendimento comum e do comércio de negócios, as traduções podem prescindir de interpretação. No âmbito da palavra elevada da poesia e do pensamento, as traduções sempre necessitam de interpretação, uma vez que elas mesmas já são interpretação. Tais traduções podem, portanto, introduzir a interpretação ou concluí-la. E a própria tradução final e completa da palavra de Heráclito deve permanecer necessariamente tão obscura quanto a palavra original. [GA55MSC:61-62]