homem

Mensch

VIDE sociedade, organismo, animal racional, filho de Deus, humanidade, humanismo

O homem não é deste mundo, na medida em que o “mundo”, pensado segundo a teoria de Platão, é apenas uma passagem transitória para o além. [CartaH, Carneiro Leão; GA9; GA9GS]


A fim de alcançarmos a dimensão da Verdade do Ser, para podermos pensa-la, temos primeiro que esclarecer, como o Ser atinge o homem e o requisita. Essa experiência Essencial, nós a fazemos quando nos ocorre que o homem é, enquanto ec-siste. Dito inicialmente na linguagem da tradição, isso se exprime nas palavras : a ec-sistência do homem é a sua substância. Por isso, em Ser e Tempo, sempre de novo retorna a frase: “A “substância” do homem é a existência” (pp. 117, 212, 314). Mas “substância”, pensada dentro da História do Ser, já é uma tradução, que encobre o sentido, de ousia, palavra que evoca a essencialidade do que se essencializa (west), mas que, por uma misteriosa equivocidade, significa, na maioria das vezes, o que se essencializa. Se pensarmos o termo metafísico “substância” nesse sentido — que Ser e Tempo, de acordo com a “destruição fenomenológica” realizada, já tem em mente (cf. p. 25) — então a frase, “a substância” do homem é a existência” não diz outra coisa senão: o modo em que o homem, em sua própria Essência, se essencializa, com referência ao Ser, é in-sistir ec-staticamente na Verdade do Ser. Com essa determinação da Essência do homem não se declaram falsas nem se rejeitam as interpretações humanistas do homem, como animal rationale, como “pessoa”, como ser dotado de alma, espírito e corpo. Ao contrário, o único pensamento a se exprimir é que as determinações humanistas da Essência do homem, ainda mesmo as mais elevadas, não chegam a fazer a experiência do que é propriamente a dignidade do homem. Nesse sentido o pensamento de Ser e Tempo é contra o humanismo. Essa oposição, todavia, não significa que um tal pensamento bandeie para o lado oposto do humano e preconize o inumano, defenda a desumanidade e degrade a dignidade do homem. Ao contrário. Pensa-se contra o humanismo porque o humanismo não coloca bastante alto a humanitas do homem. De fato, a grandeza da Essência do homem não consiste em ser ele, como “sujeito”, a substância do ente, para, na qualidade de déspota do Ser, fazer com que a entidade (Seiendsein) do ente se reduza à tão celebrada “objetividade”.

Ao invés, o homem foi “lançado” pelo próprio Ser na Verdade do Ser, a fim de que, ec-sistindo nesse lançamento, guarde a Verdade do Ser; a fim de que, na luz do Ser, o ente apareça como o ente que é. Se e como o ente aparece, se e como Deus e os deuses, a História e a natureza ingressam, se apresentam e se ausentam da clareira do Ser, isso não é o homem quem decide. O advento do ente repousa no destino do Ser. Para o homem, a questão é, se ele encontra o que é “destinado” (schicklich) à sua Essência, correspondente ao destino do Ser. Pois é de acordo com esse destino, que, como ec-sistente, ele tem de guardar a Verdade do Ser. O homem é o pastor do Ser. É somente nessa direção que pensa Ser e Tempo, ao fazer, “na cura”, a experiência da ec-sistência ec-stática. (Cf. § 44a, pp. 226 ss). [CartaH, Carneiro Leão; GA9; GA9GS]


O homem não é apenas um ser vivo, que, entre outras faculdades, possui também a linguagem. Muito mais do que isso. A linguagem é a casa do Ser. Nela morando, o homem ec-siste na medida em que pertence à Verdade do Ser, protegendo-a e guardando-a.

Destarte, na determinação da humanidade do homem, como ec-sistência, o que importa é que não é o homem o Essencial mas o Ser, como a dimensão do ec-stático da ec-sistência. Todavia não se deve entender aqui dimensão no sentido conhecido de espaço. Ao contrário, tudo que é espacial e todo espaço-tempo se essencializa no dimensional, no qual o Ser mesmo é.

O pensamento se concentra na consideração dessas simples referências. Para elas procura a palavra devida dentro da linguagem de há muito tradicional da metafísica e de sua gramática. Suposto que um título tivesse alguma importância, será que esse pensamento ainda poderia ser designado como humanismo? De certo que não, enquanto o humanismo pensa metafisicamente. Certamente não, se for existencialismo e defender a frase, que Sartre assim exprime: “précisement nous sommes sur un plan où il y a seulement des hommes”. (L’Existencialisme est un humanisme, p. 36). Em vez disso, dever-se-ia dizer, pensando-se segundo Ser e Tempo: “précisement nous sommes sur un plan où il y a principalement l’Être”. Mas, donde provém, e o que é le plan? “L’Être et le plan” são o mesmo. [CartaH]


A Essência do homem, no entanto, consiste em ser ele mais do que homem só, no sentido em que se concebe o homem, a saber, como ser vivo racional. Esse “mais” não se deve entender aditivamente, como se a definição tradicional do homem devesse ficar a determinação fundamental, para, a seguir, ser completada pela adição do existentivo. “Mais” significa: mais originário e, por isso, em sua Essência, mais Essencial. E é aqui que se mostra o enigma: o homem é no ser-lançado (Geworfenheit). Como a réplica (Gegenwurf) ec-sistente do Ser, o homem é mais do que o animal rationale na medida em que ele é menos do que o homem que se apreende e concebe pela subjetividade. [CartaH]


Entretanto, não houve na época de Sócrates um sofista que se atreveu a dizer que o homem é a medida de todas as coisas, das que são, enquanto são, das que não são, enquanto não são? Será que esta frase de Protágoras não parece sair da boca de Descartes? E, além disso, Platão não compreende o ser do ente como aquilo que se viu como sendo a idea? E a relação com o ente enquanto tal não é para Aristóteles a theoria , o puro olhar? O que ocorre é que a frase sofista de Protágoras não é nenhum subjetivismo, desde o momento em que somente Descartes podia levar a termo a inversão do pensamento grego. Não cabe duvidar que em virtude do pensamento de Platão e dos questionamentos de Aristóteles se consuma uma mudança decisiva na interpretação do ente e do homem, mas ainda está fechada dentro da compreensão fundamental do ente própria ao mundo grego. Esta interpretação é precisamente tão decisiva com respeito a ela, que se converte em ponto final do mundo grego, um final que colabora indiretamente na possibilidade de preparação da Idade Moderna. E esse é o motivo pelo qual, mais tarde, não somente na Idade Média, mas ao longo de toda a Idade Moderna, o pensamento platônico e aristotélico pudesse passar por ser o pensamento grego por antonomásia e todo o pensamento pré-platônico por uma mera preparação para Platão. Este amplo costume de contemplar o mundo grego através da peneira de uma interpretação moderna e humanista nos impede de pensar o ser que se abria aos antigos gregos naquilo que tem de próprio e extraordinário. A frase de Protágoras diz: Panton krematon metron estin anthropos, ton men onton os estin, ton de me onton os ouk estin (vide. Platão, Teeteto 152a).

“O homem é a medida de todas as coisas (concretamente daquelas que usa e necessita e, portanto, sempre tem ao seu redor, kremata kresthai), das que estão presentes enquanto estão presentes, e daquelas as quais fora negada a possibilidade de estarem presentes, das que não estão presentes.” Aquele ente sobre cujo ser se decide se entende aqui como aquilo que está presente a partir de si mesmo nesta região, dentro da esfera do homem. Todavia, quem é o homem? Platão nos informa sobre isso na mesma passagem quando faz Sócrates dizer: Oukoun outos pos legei os oia men ekasta emoi phainetai, toiauta men estin emoi, oia de soi toiauta de au soi anthropos de su te kai ego; “Será que não o entende (Protágoras) deste modo? Tal como se apresenta a mim uma coisa em cada ocasião, tal aparência tem então para mim, tal, porém, como se apresenta para ti, assim é como é essa coisa para ti? Porém, homem tu és igual a mim”.

Segundo isto, o homem é o que é em cada caso (eu e tu, ele e outros) somos. E não coincide este ego com o ego cogito de Descartes? De forma alguma, porque todo elemento essencial que determina com a mesma necessidade ambas as posições metafísicas fundamentais, a do Protágoras e a do Descartes, é destino. [DZW]


Teríamos com isso então que para Protágoras o ente segue se referindo ao homem enquanto ego? O ego permanece no círculo daquele desocultado que fora adjudicado a ele mesmo como sendo este mesmo. Desta forma então apreende tudo o que está presente nesse círculo enquanto isso que é. Esta apreensão do presente se funda na permanência no interior do círculo do desocultamento. Por meio da permanência junto ao presente, a pertença do Eu ao presente é. Esta pertença ao presente aberto delimita este, frente ao não presente. O homem recebe e preserva a medida para aquilo que se apresenta ou ausenta a partir deste limite. Em uma restrição ao que se desoculta em cada ocasião, o homem se dá a si mesmo à medida que limita a cada vez um “si mesmo” em relação a isto e àquilo. O homem não dispõe da medida a partir de um Eu isolado ao qual tem que sujeitar-se todo ente em seu ser. O nome da relação fundamental grega com o ente e seu desocultamento é o metron (medida), desde o momento em que se compromete a restringir-se ao círculo de desocultamento limitado pelo Eu e, deste modo, reconhece o ocultamento do ente e a impossibilidade de decisão com respeito à sua presença ou ausência ou, também, com respeito à aparência dessa presença e ausência. Por isso diz Protágoras (Diels, “Fragmente der Vorsokratiker”; Protágoras B, 4): peri men theon ouk eko eidenai, outh os eisin, outh os ouk eisin, outh opoioi tines idean; “no tocante ao saber algo sobre os deuses (o que em grego que dizer “contemplar” algo, “ver” algo), não tenho capacidade nem para dizer o que são nem o que não são nem como pode ser seu aspecto (idea)”.

Polla gar ta kolyonta eidenai, he t’adelotes kai brakys on o bios tou anthropou. ”Com efeito, são muitas as coisas que nos impedem de apreender o ente como tal; tanto a falta de abertura(o ocultamento) do ente, como a brevidade da história do homem.”

Podemos estranhar que, à vista desta circunspecção por parte de Protágoras, Sócrates tenha dito dele (Platão, Teeteto 152b): eikos mentoi sophon andra me lerein; “como (Protágoras) é um homem prudente, há que supor que não fala por falar (em relação a sua frase sobre o homem como ”metron“)”. [DZW]


O ente que é ao modo da existência [Weise der Existenz] é o homem. Somente o homem existe. O rochedo é, mas não existe. A árvore é, mas não existe. O anjo [82] é, mas não existe. Deus é, mas não existe. A frase: “Somente o homem existe” de nenhum modo significa apenas que o homem é um ente real, e que todos os entes restantes são irreais e apenas uma aparência ou a representação do homem. A frase: “O homem existe” significa: o homem é aquele ente cujo ser é assinalado pela in-sistência [Innestehen] ex-sistente no desvelamento do ser [Unverborgenheit des Seins] a partir do ser e no ser. A essência existencial do homem é a razão [Grund] pela qual o homem representa o ente enquanto tal e pode ter consciência [Bewusstsein] do que é representado. Toda consciência pressupõe a existência pensada ekstaticamente como a essentia do homem, significando então essentia aquilo que é o modo próprio de o homem ser (west) na medida em que é homem. [MHeidegger O RETORNO AO FUNDAMENTO DA METAFÍSICA]