Verstehen, verstehen, Verständnis
Uma tentativa de passar da representação do ente [Vorstellen des Seienden] enquanto tal para o pensamento [Denken] da verdade do ser [Wahrheit des Seins] deve, partindo daquela representação [Vorstellen], também representar ainda, de certa maneira, a verdade do ser, para que esta, finalmente, se mostre como representação inadequada para aquilo que deve ser pensado. Esta relação que vem da metafísica e que procura penetrar na referência da verdade do ser ao ser humano é concebida como compreensão [Verstehen]. Mas a compreensão é pensada aqui, ao mesmo tempo, a partir do desvelamento do ser [Unverborgenheit des Seins]. A compreensão é o projeto ekstático jogado, quer dizer, o projeto in-sistente no âmbito do aberto. O âmbito que no projeto se oferece como o aberto, para que nele algo (aqui o ser) se mostre enquanto algo (aqui o ser enquanto tal em seu desvelamento) se chama sentido (cf. Ser e Tempo, p. 151). “Sentido do ser” [Sinn von Sein] e “verdade do ser” [Wahrheit des Seins] dizem a mesma coisa. [MHeidegger O RETORNO AO FUNDAMENTO DA METAFÍSICA]
O questionado da questão a ser elaborada é o ser, o que determina o ente como ente, o em vista de que o ente já está sempre sendo compreendido, em qualquer discussão. O ser dos entes não “é” em si mesmo um outro ente. O primeiro passo filosófico na COMPREENSÃO do problema do ser consiste em não mython tina diegeisthai. “Não contar estórias” significa: não determinar a proveniência do ente como ente, reconduzindo-o a um outro ente, como se ser tivesse o caráter de um ente possível. Enquanto questionado, ser exige, portanto, um modo próprio de demonstração que se distingue essencialmente da descoberta de um ente. Em consonância, o perguntado, o sentido de ser, requer também uma conceituação própria que, por sua vez, também se diferencia dos conceitos em que o ente alcança a determinação de seu significado. STMSC: §2
Mas será que uma tal empresa não cai num manifesto círculo vicioso? Ter que determinar primeiro o ente em seu ser e, nessa base, querer colocar a questão do ser, não será andar em círculo? Para se elaborar a questão, não se está já “pressupondo” aquilo que somente a resposta à questão poderá proporcionar? Ao se refletir sobre os caminhos concretos de uma investigação, é sempre estéril recorrer a objeções formais como a acusação de um “círculo vicioso”, facilmente aduzível, no âmbito de uma reflexão sobre os princípios. Essas objeções formais não contribuem em nada para a COMPREENSÃO do problema, constituindo mesmo um obstáculo para se adentrar o campo da investigação. STMSC: §2
De fato, não há nenhum círculo vicioso no questionamento da questão. O ente pode vir a ser determinado em seu ser sem que, para isso, seja necessário já dispor de um conceito explícito sobre o sentido de ser. Não fosse assim, não poderia ter havido até hoje nenhum conhecimento ontológico, cujo teor fático não pode ser negado. Sem dúvida, até hoje, em toda ontologia, “ser” é pressuposto, embora não como um conceito à disposição, não como o que se busca. “Pressupor” ser possui o caráter de uma visualização preliminar de ser, de tal maneira que, partindo dessa visualização, o ente previamente dado se articule antecipadamente em seu ser. Essa visualização de ser, orientadora do questionamento, nasce da COMPREENSÃO mediana de ser em que nos movemos desde sempre e que, em última instância {CH: isto é, desde o princípio}, pertence à própria constituição essencial da presença [Dasein]. Tal “pressupor” nada tem a ver com o estabelecimento de um princípio indemonstrado do qual se deduziria uma conclusão. Não pode haver “círculo vicioso” na colocação da questão sobre o sentido de ser porque, na resposta, não está em jogo uma fundamentação dedutiva, mas uma liberação demonstrativa das fundações. STMSC: §2
Contudo esse questionar – a ontologia no sentido mais amplo, independente de correntes e tendências ontológicas – necessita de um fio condutor. Sem dúvida, o questionar ontológico é mais originário do que as pesquisas ônticas das ciências positivas. No entanto, permanecerá ingênuo e opaco, se as suas pesquisas sobre o ser dos entes deixarem indiscutido o sentido de ser em geral. A tarefa ontológica de uma genealogia dos diversos modos possíveis de ser, que não se deve construir de maneira dedutiva, exige uma COMPREENSÃO prévia do “que entendemos propriamente pela expressão ser. STMSC: §3
A presença [Dasein] sempre se compreende a si mesma a partir de sua existência, de uma possibilidade própria de ser ou não ser ela mesma. Essas possibilidades a própria presença [Dasein] as escolheu, mergulhou nelas ou ali simplesmente cresceu. No modo de assumir-se ou perder-se, a existência só se decide a partir de cada presença [Dasein] em si mesma. A questão da existência só poderá ser esclarecida sempre pelo próprio existir. A COMPREENSÃO de si mesma que assim se perfaz, nós a chamamos de COMPREENSÃO existenciária. A questão da existência é um “assunto” ôntico da presença [Dasein]. Para isso não é necessária a transparência teórica da estrutura ontológica da existência. A questão acerca dessa estrutura pretende desdobrar e discutir o que constitui {CH: em todo caso, de modo algum uma filosofia existencial} a existência. Chamamos de existencialidade o conjunto dessas estruturas. A análise da existencialidade não possui o caráter de uma COMPREENSÃO existenciária e sim de uma COMPREENSÃO existencial. Em sua possibilidade e necessidade, a tarefa de uma analítica existencial da presença [Dasein] já se acha prelineada na constituição ôntica da presença [Dasein]. STMSC: §4
Quando a interpretação do sentido de ser torna-se uma tarefa, a presença [Dasein] não é apenas o ente a ser interrogado primeiro. É, sobretudo, o ente que, desde sempre, se relaciona e comporta com o que se questiona nessa questão. A questão do ser não é senão a radicalização de uma tendência ontológica essencial, própria da presença [Dasein], a saber, da COMPREENSÃO pré-ontológica de ser. STMSC: §4
Ao caracterizar as tarefas incluídas na “colocação” da questão do ser, mostrou-se que não somente é necessário fixar o ente que deve funcionar como o primeiro a ser interrogado, mas que também se deve apropriar e assegurar explicitamente o modo adequado de se aproximar desse ente. Já se discutiu que ente deve assumir o papel principal na questão do ser. Mas como é que esse ente, a presença [Dasein], haverá de se tornar acessível e deverá ser encarado numa COMPREENSÃO interpretativa? STMSC: §5
De há muito que o “tempo” funciona como critério ontológico, ou melhor, ôntico, para uma distinção ingênua das diversas regiões dos entes. Distingue-se um ente “temporal” (os processos naturais e os acontecimentos da história) de um ente “não temporal” (as relações numéricas e espaciais). Costuma-se opor o sentido “atemporal” das proposições ao curso “temporal” de sua articulação e expressão. Descobre-se ainda um “abismo” entre o ente “temporal” e o eterno “supratemporal” e se busca, sempre de novo, estender uma ponte entre ambos. “Temporal” diz aqui o que está sendo a cada vez “no tempo”, uma determinação que sem dúvida é ainda bastante obscura. Persiste o fato de, na acepção de ser e estar no tempo, o tempo servir como critério para distinguir as regiões de ser. E, não obstante, até hoje não se questionou ou investigou como o tempo chegou a desempenhar essa função ontológica fundamental e com que direito funciona como um critério dessa espécie e, por fim e sobretudo, como se exprime uma possível importância ontológica verdadeira do tempo nessa utilização ontologicamente ingênua. Dentro do horizonte da COMPREENSÃO “vulgar”, o “tempo” acabou tendo, por assim dizer, “por si mesmo”, essa função ontológica “evidente” e nela se manteve até hoje. STMSC: §5
A interpretação preparatória das estruturas fundamentais da presença [Dasein] em seu modo de ser mais próximo e mediano, no qual ela é antes de tudo histórica, há de revelar o seguinte: a presença [Dasein] não somente tende a decair no mundo em que é e está, e de interpretar a si mesma pela luz que dele emana. Justamente com isso, a presença [Dasein] também decai em sua tradição, apreendida de modo mais ou menos explícito. A tradição lhe retira a capacidade de se guiar por si mesma, de questionar e escolher a si mesma. O mesmo se pode dizer, em última instância, sobre a COMPREENSÃO e sua possibilidade de construção, que lança suas raízes no ser mais próprio da presença [Dasein], isto é, no ser ontológico. STMSC: §6
Descartes, no entanto, não pára nessa omissão e, consequentemente, na completa indeterminação ontológica da res cogitans sive mens sive animus. Nas Meditationes, Descartes desenvolve suas investigações fundamentais no sentido de aplicar a ontologia medieval ao ente que ele estabelece como o fundamentum inconcussum. A res cogitans é determinada, ontologicamente, como ens e o sentido do ser deste ens é estabelecido pela ontologia medieval na COMPREENSÃO do ens como ens creatum. Como ens infinitum, Deus é o ens increatum. Ser criado, no sentido amplo de ser produzido, constitui um momento essencial na estrutura do antigo conceito de ser. O que, portanto, aparece como um novo início da filosofia revela-se como o enraizamento de um preconceito fatal. Com base neste preconceito, a posteridade moderna omitiu uma análise ontológica explícita do “ânimo”, que deveria ser conduzida pela questão do ser e, ao mesmo tempo, como uma discussão crítica da antiga ontologia legada pela tradição. STMSC: §6
A problemática da ontologia grega, bem como de toda ontologia, deve ser orientada pela própria presença [Dasein]. Tanto em sua definição vulgar como em sua “definição” filosófica, a presença [Dasein], isto é, o ser do homem, caracteriza-se como zoon logon echon, o ser vivo cujo modo de ser é, essencialmente, determinado pela possibilidade de falar. O legein (cf. §7 B) fornece a orientação para que se obtenham as estruturas ontológicas dos entes que nos vêm ao encontro nos dizeres e discussões. É por isso que a ontologia antiga, elaborada por Platão, torna-se uma “dialética”. Com o progresso da elaboração dessa orientação ontológica, isto é, da “hermenêutica” do logos, aumenta a possibilidade de uma apreensão mais radical do problema do ser. A “dialética”, que constituía uma verdadeira perplexidade filosófica, torna-se então supérflua. É também por isso que Aristóteles já não possui “nenhuma COMPREENSÃO” para ela. É que Aristóteles a elevou para um plano muito mais radical e, assim, a superou. O próprio legein ou noein, a simples percepção de algo simplesmente dado, que já Parmênides havia tomado como guia na interpretação de ser, possui a estrutura temporânea da pura “atualização” (Gegenwärtigens) de uma coisa. O ente que se manifesta nessa atualização e que é entendido como o ente próprio é, portanto, interpretado com referência ao atualmente presente, ou seja, concebido como vigência (ousia). STMSC: §6
A expressão grega phainomenon, a que remonta o termo “fenômeno”, deriva do verbo phainesthai. phainesthai significa: mostrar-se e, por isso, phainomenon diz o que se mostra, o que se revela. Já em si mesmo, porém, phainesthai é a forma média de phaino – trazer para a luz do dia, pôr no claro. phaino pertence à raiz pha, como phos, a luz, a claridade, isto é, o elemento, o meio, em que alguma coisa pode vir a se revelar e a se tornar visível em si mesma. Deve-se manter, portanto, como significado da expressão “fenômeno” o que se revela, o que se mostra em si mesmo. Ta phainomena, “os fenômenos”, constituem, pois, a totalidade do que está à luz do dia ou se pode pôr à luz, o que os gregos identificavam, algumas vezes, simplesmente com ta onta (os entes), a totalidade de tudo que é. Ora, o ente pode-se mostrar por si mesmo de várias maneiras, segundo sua via e modo de acesso. Há até a possibilidade de o ente mostrar-se como aquilo que, em si mesmo, ele não é. Neste modo de mostrar-se, o ente “se faz ver assim como…” Chamamos de aparecer, parecer e aparência (Scheinen) a esse modo de mostrar-se. Em grego, a expressão phainomenon, “fenômeno”, possui também o significado do que “se faz ver assim como”, da “aparência”, do que “parece e aparece”; phainomenon agathon designa um bem, que se deixa e faz ver como se fosse um bem, mas que “na realidade” não é assim como se dá e apresenta. A COMPREENSÃO posterior de fenômeno depende de uma visão de como ambos os significados de fenômeno (fenômeno como o que se mostra, e fenômeno como aparecer, parecer e aparência) se interrelacionam em sua estrutura. Somente na medida em que algo pretende mostrar-se em seu sentido, isto é, ser fenômeno, é que pode mostrar-se como algo que ele mesmo não é, pode “apenas se fazer ver assim como…” No significado de aparecer, parecer e aparência, também está incluído o significado originário de fenômeno como o que se revela, significado que fundamenta e sustenta o anterior. Terminologicamente reservamos a palavra fenômeno para designar o significado positivo e originário, distinguimos fenômeno de aparecer, parecer e aparência, entendidos como uma modificação privativa de fenômeno. O que ambos exprimem, porém, nada tem a ver, em princípio, com o que se chama de “manifestação” (Erscheinung) e muito menos com “mera manifestação” (blosse Erscheinung). STMSC: §7
Quer no sentido de velamento ou obstrução, quer ainda como distorção, o próprio encobrimento dispõe, por sua vez, de dupla possibilidade. Há encobrimento casual e necessário, isto é, que se funda e baseia no próprio modo de ser do descoberto. Enquanto enunciado comunicado, todo e qualquer conceito e proposição fenomenológicos, hauridos originariamente, estão expostos à possibilidade de desvirtuamento. Perdem sua solidez, transformam-se em tese solta no ar e se transmitem numa COMPREENSÃO vazia. A possibilidade de uma petrificação, enrijecimento e inapreensão do que se apreendeu originariamente acha-se no próprio trabalho concreto da fenomenologia. Toda a dificuldade destas investigações reside justamente em torná-las críticas a respeito de si mesmas, num sentido positivo. STMSC: §7
As investigações que se seguem tornaram-se possíveis apenas sobre o solo estabelecido por Edmund Husserl, cujas Investigações lógicas fizeram nascer a fenomenologia. As explicitações do conceito preliminar de fenomenologia demonstraram que o que ela possui de essencial não é ser {CH: isto é, não uma corrente filosófico-trans-cendental do idealismo crítico de Kant} uma “corrente” filosófica real. Mais elevada do que a realidade está a possibilidade. A COMPREENSÃO da fenomenologia depende unicamente de se apreendê-la como possibilidade. STMSC: §7
A questão sobre o sentido de ser é a mais universal e a mais vazia; entretanto, ela abriga igualmente a possibilidade de sua mais aguda singularização em cada presença [Dasein] {CH: propriamente: realização da insistência no pre [das Da]}. É necessário um fio condutor concreto a fim de se obter o conceito fundamental de “ser” e de se delinear a conceituação ontológica por ele exigida, bem como suas derivações necessárias. A universalidade do conceito de ser não contradiz a “especialidade” da investigação, qual seja, a de encaminhar-se, seguindo a interpretação especial de um ente determinado, a presença [Dasein]. É na presença [Dasein] que se há de encontrar o horizonte para a COMPREENSÃO e possível interpretação do ser. Em si mesma, porém, a presença [Dasein] é “histórica”, de maneira que o esclarecimento ontológico próprio deste ente torna-se sempre e necessariamente uma interpretação “referida a fatos históricos”. STMSC: §8
Por mais fácil que seja a delimitação formal da problemática ontológica face às pesquisas ônticas, a execução e, sobretudo, o ponto de partida de uma analítica existencial da presença [Dasein] não está desprovida de dificuldades. Em sua tarefa, inclui-se uma exigência, que de há muito inquieta a {CH: absolutamente! Pois o conceito de mundo não foi de modo algum concebido} filosofia, embora as tentativas de satisfazê-la sempre tenham fracassado: a saber, elaborar a ideia de um “conceito natural de mundo”. A abundância de conhecimentos disponíveis das culturas e formas de presença [Dasein] mais diversas e mais distantes parece favorecer o desenvolvimento frutífero dessa tarefa. No entanto, isto é apenas uma aparência. No fundo, tal acúmulo de conhecimento leva apenas a se desconhecer o problema propriamente dito. A comparação sincrética de tudo com tudo e a redução de tudo a tipos ainda não garante de per si um conhecimento autêntico da essência. A possibilidade de se dominar a multiplicidade variada dos fenômenos num quadro de conjunto não assegura uma COMPREENSÃO real do que é assim ordenado. O princípio autêntico de ordenamento tem seu próprio conteúdo que nunca poderá ser encontrado pelo ordenamento, já que este já o pressupõe. Assim, para o ordenamento das concepções de mundo, faz-se necessária uma ideia explícita de mundo em geral. E, no caso de “mundo” já ser em si mesmo um constitutivo da presença [Dasein], a elaboração conceitual do fenômeno do mundo requer uma visão penetrante das estruturas básicas da presença [Dasein]. STMSC: §11
As caracterizações positivas e as considerações negativas deste capítulo tinham por finalidade encaminhar, de modo adequado, a COMPREENSÃO da tendência e da atitude interrogativa da interpretação que vai se seguir. A ontologia só pode contribuir indiretamente para fomentar as disciplinas positivas existentes. Ela possui por si mesma uma finalidade autônoma, caso a questão do ser constitua o estímulo de toda busca científica, além e acima de uma simples tomada de conhecimento dos entes. STMSC: §11
Nas discussões preparatórias (§9), já destacamos caracteres de ser que iluminarão, de modo seguro, as investigações posteriores. Sua concretude estrutural, no entanto, só poderá ser alcança da ao longo da investigação. A presença [Dasein] é um sendo, que em seu ser relaciona-se com esse ser numa COMPREENSÃO. Com isso, indica-se o conceito formal de existência. A presença [Dasein] existe. A presença [Dasein] é ademais um sendo, que sempre eu mesmo sou. Ser sempre minha pertence à existência da presença [Dasein] como condição de possibilidade de propriedade e impropriedade. A presença [Dasein] existe sempre num desses modos, mesmo quando existe numa indiferença modal para com esses modos. STMSC: §12
Como existencial, o “ser-junto” ao mundo nunca indica um simplesmente dar-se em conjunto de coisas que ocorrem. Não há nenhuma espécie de “justaposição” de um ente chamado “presença [Dasein]” a um outro ente chamado “mundo”. Por vezes, sem dúvida, costumamos exprimir com os recursos da língua o conjunto de dois entes simplesmente dados, dizendo: “a mesa está junto à porta”, “a cadeira ‘toca’ a parede”. Rigorosamente, nunca se poderá falar aqui de um “tocar”, não porque sempre se pode constatar, num exame preciso, um espaço entre a cadeira e a parede, mas porque, em princípio, a cadeira não pode tocar a parede mesmo que o espaço entre ambas fosse igual a zero. Para tanto, seria necessário pressupor que a parede viesse ao encontro “da” cadeira. Um ente só poderá tocar um outro ente simplesmente dado dentro do mundo se, por natureza, tiver o modo do ser-em, se, com sua presença [Dasein], já se lhe houver sido descoberto um mundo. Pois a partir do mundo o ente poderá, então, revelar-se no toque e, assim, tornar-se acessível em seu ser simplesmente dado. Dois entes que se dão simplesmente dentro do mundo e que, além disso, são em si mesmos destituídos de mundo, nunca podem “tocar”-se, nunca um deles pode “ser e estar junto ao” outro. Não pode faltar o acréscimo: “e, além disso, são em si mesmos destituídos de mundo”, porque também o ente que não é destituído de mundo, por exemplo, a própria presença [Dasein], se dá simplesmente “no” mundo ou, mais precisamente, também pode ser apreendido, com certa razão e dentro de certos limites, como algo simplesmente dado. Para isso, no entanto, é preciso que se desconsidere inteiramente, isto é, que não se veja a constituição existencial do ser-em. Mas não se deve confundir essa possibilidade de apreender a “presença [Dasein]” como um dado e somente como simples dado com um modo de “ser simplesmente dado”, próprio da presença [Dasein]. Pois este ser simplesmente dado não é acessível quando se desconsideram as estruturas específicas da presença [Dasein]. Ele só se torna acessível em sua COMPREENSÃO prévia. A presença [Dasein] compreende o seu ser mais próprio no sentido de um certo “ser simplesmente dado fatual”. Na verdade, a “fatualidade” do fato da própria presença [Dasein] é, em seu ser, fundamentalmente diferente da ocorrência fatual de uma espécie qualquer de pedras. Chamamos de facticidade o caráter de fatualidade do fato da presença [Dasein] em que, como tal, cada presença [Dasein] sempre é. À luz da elaboração das constituições existenciais básicas da presença [Dasein], a estrutura complexa desta determinação ontológica só poderá ser apreendida em si mesma como problema. O conceito de facticidade abriga em si o ser-no-mundo de um ente “intramundano”, de maneira que este ente possa ser compreendido como algo que, em seu “destino”, está ligado ao dos entes que lhe vêm ao encontro dentro de seu próprio mundo. STMSC: §12
Não apenas na epistemologia, mas na maior parte das vezes, toma-se o conhecimento do mundo exclusivamente como exemplo do fenômeno de ser-em, pois se entende a atitude prática como “não teórica” e “ateórica”. Porque este primado do conhecimento desorienta a COMPREENSÃO do modo de ser mais próprio do conhecimento, deve-se ressaltar, de maneira ainda mais precisa, o ser-no-mundo, no tocante ao conhecimento do mundo, e torná-lo visível como uma “modalidade” existencial do ser-em. STMSC: §12
O modo de lidar, talhado segundo o instrumento, e único lugar em que ele se pode mostrar genuinamente em seu ser como, por exemplo, o martelar com o martelo, não apreende tematicamente esse ente como uma coisa que apenas ocorre, da mesma maneira que o uso não sabe da estrutura do instrumento como tal. O martelar não somente tido sabe do caráter instrumental do martelo como se apropriou de tal maneira desse instrumento que uma adequação mais perfeita não seria possível. Ao se lidar com o instrumento no uso, a ocupação se subordina ao ser para (Um-zu) constitutivo do respectivo instrumento; quanto menos se fixar na coisa martelo, mais se sabe usá-lo, mais originário se torna o relacionamento com ele e mais desvelado é o modo em que se dá ao encontro naquilo que ele é, ou seja, como instrumento. O próprio martelar é que descobre o “manuseio” especifico do martelo. Denominamos de manualidade o modo de ser do instrumento em que ele se revela por si mesmo. O instrumento está disponível para o manuseio, em sentido amplo, unicamente porque todo instrumento possui esse “ser-em-si”, não sendo o que simplesmente ocorre. Por maior que seja o grau em que se visualize precisamente a “configuração” das coisas na qual elas aparecem desta ou daquela maneira, nunca se conseguirá descobrir o que é o manual. A visualização puramente “teórica” das coisas carece de uma COMPREENSÃO da manualidade. O modo de lidar com os instrumentos no uso e no manuseio não é porém cego. Possui seu modo próprio de ver que dirige o manuseio e lhe confere uma segurança especifica. O modo de lidar com instrumentos subordina-se a multiplicidade de referências do “ser para” (Um-zu). A visão desse subordinar-se é a circunvisão. STMSC: §15
No modo de lidar cotidiano, a manualidade do sinal e a sua surpresa, que pode ser produzida segundo várias intenções e modos, documentam não apenas a não-surpresa constitutiva do que mais imediatamente está à mão. Também indicam que é o próprio sinal que retira a sua surpresa da não-surpresa do todo instrumental, à mão na cotidianidade de modo “evidente” como, por exemplo, o costume de se dar um “nó no lenço” como marca de lembrança. O que ele mostra é que há sempre algo com que se ocupar na circunvisão da cotidianidade. Esse sinal pode mostrar muitas coisas e das mais diversas espécies. A envergadura do que se pode mostrar nesse sinal corresponde à limitação do uso e da COMPREENSÃO. Na maior parte das vezes, enquanto sinal, ele não apenas está à mão somente para o seu “inventor” como, mesmo para ele, pode tornar-se inacessível, de tal maneira que um segundo sinal se faz necessário para o emprego possível do primeiro pela circunvisão. Embora não podendo ser usado como sinal, o nó não perde o seu caráter de sinal, adquirindo uma importunidade inquietante. STMSC: §17
O compreender, que a seguir será analisado mais profundamente (cf. §31), contém, numa abertura prévia, as remissões mencionadas. Detendo-se nessa familiaridade, o compreender atém-se a estas remissões como o contexto em que se movem as suas referências. O próprio compreender se deixa referenciar nessas e para essas remissões. Apreendemos o caráter de remissão dessas remissões de referência como ação de signi-ficar. Na familiaridade com essas remissões, a presença [Dasein] “significa” para si mesma, ela oferece o seu ser e seu poder-ser a si mesma para uma COMPREENSÃO originária, no tocante ao ser-no-mundo. O em virtude de significa um ser para, este um ser para isso, esse um estar junto em que se deixa e faz em conjunto, esse um estar com da conjuntura. Essas remissões estão acopladas entre si como totalidade originária. Elas são o que são enquanto ação de signi-ficar (Be-deuten), onde a própria presença [Dasein] se dá a compreender previamente a si mesma no seu ser-no-mundo. Chamamos de significância o todo das remissões] dessa ação de significar (Bedeuten). A significância é o que constitui a estrutura de mundo em que a presença [Dasein] {CH: a presença [Dasein] em que o homem vigora} já é sempre como é. Em sua familiaridade com a significância, a presença [Dasein] é a condição ôntica de possibilidade para se poder descobrir os entes que num mundo vêm ao encontro no modo de ser da conjuntura (manualidade) e que se podem anunciar em seu em-si. A presença [Dasein] como tal é sempre esta presença [Dasein] com a qual já se descobre essencialmente um contexto de manuais. Sendo, a presença [Dasein] já se {CH: mas não como uma ação e feito, dotados de eu, de um sujeito. Mas, presença [Dasein] e ser.} referiu a um “mundo” que lhe vem ao encontro, pois pertence essencialmente a seu ser uma referencialidade. STMSC: §18
Somente respondendo a essas questões poder-se-á alcançar uma COMPREENSÃO positiva da problemática do mundo, demostrar a origem de seus desvios e comprovar o fundamento de direito para se recusar a ontologia tradicional do mundo. STMSC: §21
Quando, porém, lembramos que a espacialidade manifestamente também constitui o ente intramundano, torna-se, enfim, possível “salvar” a análise cartesiana do “mundo”. Com a explicitação radical da extensio como praesuppositum de toda determinação da res corpórea, Descartes preparou a COMPREENSÃO de um a priori, cujo conteúdo foi fixado posteriormente por Kant de maneira mais penetrante. Dentro de certos limites, a análise da extensio independe da falta de uma interpretação explícita do ser deste ente dotado de extensão. O ponto de partida da extensão como determinação fundamental do “mundo” possui a sua razão fenomenal, embora nem a espacialidade do mundo, nem a espacialidade primeiramente descoberta dos entes que vêm ao encontro no mundo circundante e, sobretudo, a espacialidade da própria presença [Dasein] possam por ela ser compreendidas ontologicamente. STMSC: §21
Enquanto ser-no-mundo, a presença [Dasein] já descobriu a cada passo um “mundo”. Caracterizou-se esse descobrir, fundado na mundanidade do mundo, como liberação dos entes numa totalidade conjuntural. A ação liberadora de deixar e fazer em conjunto se perfaz no modo da referência, guiada pela circunvisão e fundada numa COMPREENSÃO prévia da significância. Mostra-se assim que, dentro de uma circunvisão, o ser-no-mundo é espacial. E somente porque a presença [Dasein] é espacial, tanto no modo de dis-tanciamento quanto no modo de direcionamento, o que se acha à mão no mundo circundante pode vir ao encontro em sua espacialidade. A liberação de uma totalidade conjuntural é, de maneira igualmente originária, um deixar e fazer em conjunto que, numa região, dis-tancia e direciona, ou seja, libera a pertinência espacial do que está à mão. Na significância, familiar à presença [Dasein] nas ocupações de seu ser-em, reside também a abertura essencial do espaço. STMSC: §24
A aporia ainda hoje presente nas interpretações do ser do espaço funda-se não tanto num conhecimento insuficiente dos conteúdos do próprio espaço, mas na falta de uma clareza de princípio a respeito das possibilidades de ser e de sua interpretação ontológica. O decisivo para uma COMPREENSÃO do problema ontológico do espaço consiste em libertar a questão sobre o ser do espaço da estreiteza dos conceitos ontológicos disponíveis e em sua maioria não elaborados. E, além disso, em esclarecer pelas possibilidades do ser em geral a problemática do ser do espaço, no tocante ao próprio fenômeno e às diversas espacialidades fenomenais. STMSC: §24
O mundo libera não apenas o manual enquanto ente que vem ao encontro dentro do mundo, mas também presença [Dasein], os outros em sua co-presença [Dasein]. Contudo, esse ente liberado no mundo circundante, de acordo com seu sentido mais próprio de ser, é um ser-em um mesmo mundo, em que é co-presente, encontrando-se com outros. A mundanidade foi interpretada (§18) como totalidade referencial da significância. Na familiaridade com ela, dotada de COMPREENSÃO prévia, a presença [Dasein] deixa e faz vir ao encontro o manual enquanto algo que se descobre em sua conjuntura. O contexto referencial da significância ancora-se no ser da presença [Dasein] para o seu ser mais próprio, a ponto de, essencialmente, não poder ter nenhuma conjuntura, sendo o ser em virtude do qual a própria presença [Dasein] é como é. STMSC: §26
Que “empatia” não constitua um fenômeno existencial originário e nem um conhecer, isso não significa, porém, que ela não coloque problemas a seu respeito. Sua hermenêutica específica terá de mostrar como as diversas possibilidades ontológicas da própria presença [Dasein] desviam e impedem a convivência e seu respectivo conhecimento, de tal modo que um seu “compreender” autêntico se vê sufocado, e a presença [Dasein] passa a recorrer a seus sucedâneos; ademais, terá também de mostrar a possibilidade que supõe a condição existencial positiva de uma COMPREENSÃO adequada do outro. A análise mostrou: o ser-com é um constitutivo existencial do ser-no-mundo. A co-presença [Dasein] se comprova como modo de ser próprio dos entes que vêm ao encontro dentro do mundo. Porque a presença [Dasein] é, ela possui o modo de ser da convivência. Esta não pode ser concebida como o resultado da soma de vários “sujeitos”. O deparar-se com o contingente numérico de “sujeitos” só é possível quando os outros que vêm ao encontro na co-presença [Dasein] são tratados meramente como “números”. Tal contingente só se descobre por meio de um determinado ser-com e para os outros. Esse ser-com “desconsiderado” “conta” os outros sem “levá-los em conta” seriamente, sem querer “ter algo a ver” com eles. STMSC: §26
Com a interpretação do ser-com e do ser-si-mesmo no impessoal, respondeu-se a pergunta quem da convivência cotidiana. Estas reflexões propiciam, ao mesmo tempo, uma COMPREENSÃO concreta da constituição fundamental da presença [Dasein]. O ser-no-mundo tornou-se visível em sua cotidianidade e em sua medianidade. STMSC: §27
Em B (o ser cotidiano do pre [das Da] e a decadência da presença [Dasein]), de acordo com o fenômeno constitutivo da fala, da visão inserida na COMPREENSÃO e, de acordo com a interpretação pertinente (significado), serão analisados, enquanto modos existenciais do ser cotidiano do pre [das Da]: a falação (§35), a curiosidade (§36), a ambiguidade (§37). Nesses fenômenos, torna-se visível um modo fundamental de ser do pre [das Da] que interpretamos como decadência. Trata-se de uma “cadência”, que mostra um modo existencial próprio de movimentação (§38). STMSC: §28
Isto é o que mostra o mau-humor. Nele, a presença [Dasein] se faz cega para si mesma, o mundo circundante da ocupação se vela, a circunvisão da ocupação se desencaminha. A disposição é tão pouco trabalhada pela reflexão que faz com que a presença [Dasein] se precipite para o “mundo” das ocupações numa dedicação e abandono irrefletidos. O humor se precipita. Ele não vem de “fora” nem de “dentro”. Cresce a partir de si mesmo como modo de ser-no-mundo. Com isso, porém, passamos de uma delimitação negativa da disposição frente à apreensão reflexiva do “interior” para uma COMPREENSÃO positiva de seu caráter de abertura. O humor já abriu o ser-no-mundo em sua totalidade e só assim torna possível um direcionar-se para… O estado de humor não remete, de início, a algo psíquico e não é, em si mesmo, um estado interior que, então, se exteriorizasse de forma enigmática, dando cor as coisas e pessoas. Nisto mostra-se o segundo caráter essencial da disposição: ela é um modo existencial básico da abertura igualmente originária de mundo, de co-presença [Dasein] e existência, pois também este modo é em si mesmo ser-no-mundo. STMSC: §29
Além dessas duas determinações essenciais da disposição aqui explicitadas: a abertura do estar-lançado e a abertura do ser-no-mundo em sua totalidade, deve-se considerar ainda uma terceira, que contribui sobremaneira para uma COMPREENSÃO mais profunda da mundanidade do mundo. Como dissemos anteriormente, o mundo que já se abriu deixa e faz com que o ente intramundano venha ao encontro. Essa abertura prévia do mundo, que pertence ao ser-em, também se constitui de disposição. Deixar e fazer vir ao encontro é, primariamente, uma circunvisão e não simplesmente sensação ou observação. Numa ocupação dotada de circunvisão, deixar e fazer vir ao encontro tem o caráter de ser atingido, como agora se pode ver mais agudamente a partir da disposição. Do ponto de vista ontológico, inutilidade, resistência, ameaça, são apenas possíveis, porque o ser-em como tal se acha determinado previamente em sua existência, de modo a poder ser tocado dessa maneira pelo que vem ao encontro dentro do mundo. Esse ser tocado funda-se na disposição, descobrindo o mundo como tal, no sentido, por exemplo, de ameaça. Apenas o que é na disposição do medo, o sem medo, pode descobrir o que está à mão no mundo circundante como algo ameaçador. O estado de humor da disposição constitui, existencialmente, a abertura mundana da presença [Dasein]. STMSC: §29
Dentro da problemática dessa investigação não será possível interpretar os diferentes modos da disposição e seus nexos de fundamentação. Esses fenômenos são de há muito conhecidos e onticamente sempre considerados pela filosofia, sob o nome de afetos e sentimentos. Não é por acaso que a primeira interpretação dos afetos, legada e conduzida sistematicamente, não tenha sido tratada no âmbito da “psicologia”. Aristóteles investiga a pathe, no segundo livro de sua Retórica. Ao contrário da orientação tradicional do conceito de retórica como uma espécie de “disciplina”, ela deve ser apreendida como a primeira hermenêutica sistemática da convivência cotidiana com os outros. O público, enquanto modo de ser do impessoal (cf. §27), não só possui seu estado de humor como precisa da afinação do humor e a “constrói” para si. É a partir dele e em seu sentido que fala o orador. Ele necessita da COMPREENSÃO das possibilidades do humor para despertá-las e dirigi-las da maneira mais adequada. STMSC: §29
A disposição é uma das estruturas existenciais em que o ser do “pre [das Da]” da presença [Dasein] se sustenta. De maneira igualmente originária, também o compreender constitui esse ser. Toda disposição sempre possui a sua COMPREENSÃO, mesmo quando a reprime. O compreender está sempre afinado pelo humor. Interpretando o compreender como um existencial {CH: de modo ontológico-fundamental, isto é, a partir da remissão da verdade de ser} fundamental, mostra-se que esse fenômeno é concebido como modo fundamental de ser da presença [Dasein]. No sentido, porém, de um modo possível de conhecimento entre outros, que se distingue, por exemplo, do “esclarecer”, o “compreender” deve ser interpretado juntamente com aquele, como um derivado existencial do compreender primordial, que também constitui o ser do pre [das Da] da presença [Dasein]. STMSC: §31
O projeto sempre diz respeito a toda a abertura de ser-no-mundo; como poder-ser, o próprio compreender possui possibilidades prelineadas pelo âmbito do que nele é passível de se abrir essencialmente. O compreender pode colocar-se primariamente na abertura de mundo, ou seja, a presença [Dasein] pode, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, compreender-se a partir de seu mundo. Ou ainda, o compreender lança-se primariamente para o em virtude de, isto é, a presença [Dasein] existe como ela mesma {CH: mas não como sujeito, indivíduo ou pessoa}. Brotando de seu si mesmo em sentido próprio, o compreender é próprio ou impróprio. “Im”-próprio não significa que a presença [Dasein] rompa consigo mesma e “só” compreenda o mundo. Mundo pertence ao seu ser-si-mesmo como ser-no-mundo. Por isso, o compreender propriamente é o compreender impropriamente podem ser autênticos ou inautênticos. Enquanto um poder-ser, o compreender está inteiramente impregnado de possibilidade. O translado para uma dessas possibilidades fundamentais da COMPREENSÃO não deixa de lado as demais. A transferência inerente ao compreender é uma modificação existencial do projeto como um todo porque o compreender sempre diz respeito a toda a abertura da presença [Dasein] como ser-no-mundo. No compreender de mundo, o ser-em também é sempre compreendido. Compreender de existência como tal é sempre compreender mundo. STMSC: §31
Ao se mostrar que toda visão funda-se primariamente no compreender – a circunvisão da ocupação é o compreender enquanto compreensibilidade – retira-se da intuição pura a sua primazia que, noeticamente, corresponde à primazia ontológica tradicional do ser simplesmente dado. “Intuição” e “pensamento” {CH: como “COMPREENSÃO” dianoia, mas não entender a COMPREENSÃO a partir do entendimento} já são ambos derivados distantes do compreender. Também a “intuição ou visão da essência” (Wesensschau) fenomenológica está fundada no compreender existencial. Contudo, só se deve decidir alguma coisa sobre esse modo de ver depois de obtidos os conceitos explícitos de ser e da estrutura de ser, único modo em que os fenômenos podem vir a ser fenômenos em sentido fenomenológico. STMSC: §31
Tudo o que está à mão sempre já se compreende a partir da totalidade conjuntural. Esta, no entanto, não precisa ser apreendida explicitamente numa interpretação temática. Mesmo quando percorrida por uma interpretação, ela se recolhe novamente numa COMPREENSÃO implícita. E é justamente nesse modo que ela se torna fundamento essencial da interpretação cotidiana da circunvisão. Essa sempre se funda numa posição prévia. Ao apropriar-se da COMPREENSÃO, a interpretação se move em sendo compreensivamente para uma totalidade conjuntural já compreendida. A apropriação do compreendido, embora ainda velado, sempre cumpre o desvelamento guiada por uma visão que fixa o parâmetro na perspectiva do qual o compreendido há de ser interpretado. A interpretação funda-se sempre numa visão prévia , que “recorta” o que foi assumido na posição prévia, segundo uma possibilidade determinada de interpretação. O compreendido, estabelecido numa posição prévia e encarado numa “visão previdente” (vorsichtig) torna-se conceito através da interpretação. A interpretação pode haurir conceitos pertencentes ao ente a ser interpretado a partir dele mesmo, ou então forçar conceitos contra os quais o ente pode resistir em seu modo de ser. Como quer que seja, a interpretação sempre já se decidiu, definitiva ou provisoriamente, por uma determinada conceituação, pois está fundada numa concepção prévia. STMSC: §32
No projetar-se do compreender, o ente se abre em sua possibilidade. O caráter de possibilidade sempre corresponde ao modo de ser de um ente compreendido. O ente intramundano em geral é projetado para o mundo, ou seja, para um todo de significância em cujas remissões referenciais a ocupação se consolida previamente como ser-no-mundo. Se junto com o ser da presença [Dasein] o ente intramundano também se descobre, isto é, chega a uma COMPREENSÃO, dizemos que ele tem sentido. Rigorosamente, porém, o que é compreendido não é o sentido, mas o ente e o ser. Sentido é aquilo em que se sustenta a compreensibilidade de alguma coisa. Chamamos de sentido aquilo que pode articular-se na abertura compreensiva. STMSC: §32
O conceito de sentido abrange o aparelhamento formal daquilo que pertence necessariamente ao que é articulado pela interpretação que compreende. Sentido é a perspectiva na qual se estrutura o projeto pela posição prévia, visão prévia e concepção prévia. É a partir dela que algo se torna compreensível como algo. Como compreender e interpretação constituem existencialmente o ser do pre [das Da], o sentido deve ser concebido como o aparelhamento existencial-formal da abertura pertencente ao compreender. Sentido é um existencial da presença [Dasein] e não uma propriedade colada sobre o ente, que se acha por “detrás” dele ou que paira não se sabe onde, numa espécie de “reino intermediário”. A presença [Dasein] só “tem” sentido na medida em que a abertura do ser-no-mundo pode ser “preenchida” por um ente que nela se pode descobrir. Somente a presença [Dasein] pode ser com sentido ou sem sentido. Isso significa: o seu próprio ser e o ente que se lhe abre podem ser apropriados na COMPREENSÃO ou recusados na incompreensão. STMSC: §32
Enquanto abertura do pre [das Da], o compreender sempre diz respeito a todo o ser-no-mundo. Em todo compreender de mundo, a existência também esta compreendida e vice-versa. Toda interpretação, ademais, move-se na estrutura prévia já caracterizada. Toda interpretação que se coloca no movimento de compreender já deve ter compreendido o que se quer interpretar. Esse fato foi sempre observado na interpretação filológica, embora apenas nos setores dos modos derivados de COMPREENSÃO e interpretação. A interpretação filológica pertence ao âmbito do conhecimento científico. Esse conhecimento exige o rigor de uma demonstração fundamentada. A prova científica não deve pressupor aquilo que ela há de fundamentar. Se, porém, a interpretação já sempre se movimenta no já compreendido e dele se deve alimentar, como poderá produzir resultados científicos sem se mover num círculo, sobretudo se a COMPREENSÃO pressuposta se articula no conhecimento comum de homem e mundo? Segundo as regras mais elementares da lógica, no entanto, o círculo e um circulus vitiosus. Com isso, porém, o ofício da interpretação histórica se acha a priori banido do campo de todo conhecimento rigoroso. Enquanto não se abolir do compreender esse círculo, a historiografia deve satisfazer-se com possibilidades menos rigorosas de conhecimentos. Permite-se-lhe que preencha, de certo modo, essa falta mediante o “significado espiritual” de seus “objetos”. Segundo a opinião dos próprios historiadores, o ideal seria que se pudesse evitar o círculo na esperança de se criar, pela primeira vez, uma historiografia tão independente do ponto de vista do observador como se presume que seja o conhecimento da natureza. STMSC: §32
Ligar e separar podem também ser formalizados como “relação”. É por isso que, logisticamente, o juízo se dissolveu num sistema de “ordenamentos”, tornando-se mero objeto de “cálculo” e nunca tema de uma interpretação ontológica. Tanto a possibilidade quanto a impossibilidade de uma COMPREENSÃO analítica da synthesis e diairesis da “relação” em todo e qualquer juízo se acham estreitamente ligadas ao estado em que se acha a problemática ontológica de princípio. STMSC: §33
Disposição e compreender são os existenciais fundamentais que constituem o ser do pre [das Da], ou seja, a abertura do ser-no-mundo. O compreender guarda em si a possibilidade de interpretação, isto é, de uma apropriação do que se compreende. Sendo disposição e compreender igualmente originários, a disposição se mantém numa certa COMPREENSÃO. Corresponde-lhe também uma certa possibilidade de interpretação. O enunciado tornou visível um derivado extremo da interpretação. O esclarecimento do terceiro significado de enunciado como comunicação (declaração) levou ao conceito de dizer e pronunciar, até aqui propositadamente desconsiderado. Que somente agora se tematize a linguagem, isso deve indicar que este fenômeno se radica na constituição existencial da abertura da presença [Dasein]. O fundamento ontológico-existencial da linguagem é a fala. Embora tenhamos excluído esse fenômeno de uma análise temática, dele nos servimos constantemente nas interpretações feitas até aqui da disposição, do compreender, da interpretação e do enunciado. STMSC: §34
No escutar “natural” daquilo sobre o que se fala, podemos, sem dúvida, escutar também o modo de dizer, a “dicção”. Mesmo isso só é possível dentro de uma COMPREENSÃO prévia daquilo sobre que se fala, pois somente assim subsiste a possibilidade de avaliar o modo de dizer no tocante à sua adequação ao tema sobre o qual se fala. STMSC: §34
Da mesma forma, a fala contestatória tomada como resposta é uma sequência direta da COMPREENSÃO daquilo sobre o que se fala, já “partilhado” no ser-com. STMSC: §34
Somente onde se dá a possibilidade existencial de fala e escuta é que alguém pode ouvir. Quem “não pode escutar” e “deve sentir” talvez possa muito bem e, justamente por isso, ouvir. O escutar por aí é uma privação da COMPREENSÃO que escuta. Fala e escuta fundam-se no compreender. O compreender não surge de muitas falas nem de muito escutar por aí. Somente quem já compreendeu é que poderá escutar. STMSC: §34
Uma outra possibilidade constitutiva da fala, o silêncio, possui o mesmo fundamento existencial. Quem silencia na fala da convivência pode “dar a entender” com maior propriedade, isto significa, pode elaborar a COMPREENSÃO por oposição àquele que não perde a palavra. Falar muito sobre alguma coisa não assegura em nada uma COMPREENSÃO maior. Ao contrário, as falas prolixas encobrem e emprestam ao que se compreendeu uma clareza aparente, ou seja, a incompreensão da trivialidade. Silenciar, no entanto, não significa ficar mudo. Ao contrário, o mudo é a tendência “para dizer”. O mudo não apenas não provou que pode silenciar, como lhe falta até a possibilidade de prová-lo. E, como o mudo, aquele que, por natureza, fala pouco, também ainda não mostra que silencia e pode silenciar. Quem nunca diz nada também não pode silenciar num dado momento. Silenciar em sentido próprio só é possível numa fala autêntica. Para poder silenciar, a presença [Dasein] deve ter algo a dizer {CH: e o a ser dito? (O ser)}, isto é, deve dispor de uma abertura própria e rica de si mesma. Pois só então o estar em silêncio se revela e, assim, abafa a “falação”. Como modo de fala, o estar em silêncio articula tão originariamente a compreensibilidade da presença [Dasein] que dele provém o verdadeiro poder escutar e a convivência transparente. STMSC: §34
Porque a fala é constitutiva do ser do pre [das Da], isto é, da disposição e do compreender, a presença [Dasein] significa então: como ser-no-mundo, a presença [Dasein] se pronunciou como ser-em uma fala. A presença [Dasein] possui linguagem. Terá sido mero acaso que os gregos depositaram a sua existência cotidiana predominantemente no espaço aberto pela fala convivial, guardando ao mesmo tempo olhos para ver, tanto na interpretação filosófica como na pré-filosófica da presença [Dasein], a essência do homem determinada como zoon logon echon {CH: o homem como o que “colhe”, recolhendo-se no ser-vigente na abertura dos entes (mas estes em segundo plano)}? A interpretação posterior dessa caracterização do homem, no sentido de animal rationale, “animal racional”, não é, com efeito, “falsa”, mas encobre o solo fenomenal que deu origem a essa definição da presença [Dasein]. O homem mostra-se como um ente que é na fala. Isso não significa que a possibilidade de articulação verbal seja apenas própria do homem, e sim que o homem se realiza no modo de descoberta de mundo e da própria presença [Dasein]. Os gregos não dispunham de uma palavra própria para linguagem porque entendiam esse fenômeno “sobretudo” como fala. Por outro lado, porque na reflexão filosófica o logos foi visualizado, sobretudo como enunciado, a elaboração das estruturas básicas das formas e dos integrantes da fala se deu de acordo com este logos. A gramática buscou seus fundamentos na “lógica” deste logos. Esta, por sua vez, se funda na ontologia do simplesmente dado. O acervo das “categorias semânticas”, herdado pela linguística posterior e ainda hoje decisivo em seus princípios, orienta-se pela fala entendida como enunciado. Tomando, porém, esse fenômeno em toda a originariedade fundamental e em todo o alcance de um existencial, será necessário transpor a linguística para fundamentos mais originários do ponto de vista ontológico. A tarefa de libertar a gramática da lógica necessita de uma COMPREENSÃO preliminar e positiva da estrutura a priori da fala como existencial. Essa tarefa não pode ser cumprida subsidiariamente através de correções e complementações do que foi legado pela tradição. Nesse propósito, devem-se questionar as formas fundamentais em que se funda a possibilidade semântica de articulação do que é susceptível de COMPREENSÃO e não apenas dos entes intramundanos conhecidos teoricamente e expressos em proposições. A semântica não se constitui por si mesma de uma comparação ampla do maior número possível de línguas e das línguas mais distantes entre si. Também não basta assumir o horizonte filosófico em que W.v. Humboldt problematizou a linguagem. A semântica tem suas raízes na ontologia da presença [Dasein]. O seu florescimento ou fenecimento está atrelado ao destino da presença [Dasein]. STMSC: §34
Remontando às estruturas existenciais que compõem a abertura do ser-no-mundo, a interpretação, de certo modo, perdeu de vista a cotidianidade da presença [Dasein]. A análise deve reconquistar mais uma vez o horizonte fenomenal, estabelecido para seu tema. Levanta-se então a pergunta: Quais são os caracteres existenciais da abertura do ser-no-mundo quando o ser-no-mundo cotidiano se detém no modo de ser do impessoal? Será que esse modo de ser possui uma disposição própria e específica, uma COMPREENSÃO, uma fala e uma interpretação especiais? A resposta a essas perguntas torna-se tanto mais urgente quanto mais se recorda que, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a presença [Dasein] sucumbe ao impessoal e por ele se deixa dominar. Como ser-lançado-no-mundo, não será que a presença [Dasein] foi jogada de saída no caráter público do impessoal? E que mais significa esse ser público do que a abertura específica do impessoal? STMSC: §34
Tanto a escuta quanto o compreender já aderiram previamente ao que foi falado como tal. A comunicação não “partilha” a referência ontológica primordial com o referencial da fala, mas a convivência se move dentro de uma fala comum e numa ocupação com o falado. O seu empenho é para que se fale. O que se diz, o dito e a dicção empenham-se agora pela autenticidade e objetividade da fala e de sua COMPREENSÃO. Por outro lado, dado que a fala perdeu ou jamais alcançou a referência ontológica primária ao referencial da fala, ela nunca se comunica no modo de uma apropriação originária deste sobre o que se fala, contentando-se com repetir e passar adiante a fala. O falado na falação arrasta consigo círculos cada vez mais amplos, assumindo um caráter autoritário. As coisas são assim como são porque é assim que delas (impessoalmente) se fala. Repetindo e passando adiante a fala, potencia-se a falta de solidez. Nisso se constitui a falação. A falação não se restringe apenas à repetição oral da fala, mas expande-se no que escreve enquanto “escrivinhação”. Aqui, a repetição da fala não se funda tanto no ouvir dizer. Ela se alimenta do que se lê. A COMPREENSÃO mediana do leitor nunca poderá distinguir o que foi haurido e conquistado originariamente do que não passa de mera repetição. E mais ainda, a própria COMPREENSÃO mediana não tolera tal distinção, pois não necessita dela, já que tudo compreende. STMSC: §35
A fala que pertence à constituição de ser essencial da presença [Dasein] também perfaz a sua abertura. Ela traz a possibilidade de se tornar falação e, com isso, de manter o ser-no-mundo não tanto numa COMPREENSÃO estruturada, mas de trancar e encobrir os entes intramundanos. Para isso, porém, não necessita da intenção de enganar. A falação não tem o modo de ser em que apresenta conscientemente algo como algo. O que é sem solo ou fundamento já lhe basta para transformar a abertura em fechamento. Pois o que foi dito já foi sempre compreendido como algo “que diz”, ou seja, que descobre. A falação é, pois, por si mesma, um fechamento, devido à sua própria abstenção de retornar à base e ao fundamento do referencial. STMSC: §35
Este tipo de interpretação própria da falação já se consolidou na presença [Dasein]. É dessa maneira que aprendemos e conhecemos muitas coisas. É dessa maneira ainda que não poucas coisas jamais conseguem ultrapassar uma tal COMPREENSÃO mediana. A presença [Dasein] nunca consegue subtrair-se a essa interpretação cotidiana em que ela cresce. Todo compreender, interpretar e comunicar autênticos, toda redescoberta e nova apropriação cumprem-se nela, a partir dela e contra ela. Não é possível uma presença [Dasein], que não sendo tocada nem desviada pela interpretação mediana, pudesse colocar-se diante da paisagem livre de um “mundo” em si, para apenas contemplar o que lhe vem ao encontro. O predomínio da interpretação pública já decidiu até mesmo sobre as possibilidades de sintonização com o humor, isto é, sobre o modo fundamental em que a presença [Dasein] é tocada pelo mundo. O impessoal prescreve a disposição e determina o quê e como se “vê”. STMSC: §35
Obstruindo da maneira descrita, a falação constitui o modo de ser da COMPREENSÃO desenraizada de presença [Dasein]. Ela não se apresenta como estado simplesmente dado de algo simplesmente dado, mas, existencialmente sem raízes, ela mesma é no modo de um contínuo desenraizamento. Do ponto de vista ontológico, isso significa: como ser-no-mundo, a presença [Dasein] que se mantém na falação cortou suas remissões ontológicas primordiais, originárias e legítimas com o mundo, com a co-presença [Dasein] e com o próprio ser-em. Ela se mantém oscilante e, desse modo, sempre é e está junto ao “mundo”, com os outros e consigo mesma. Somente um ente cuja abertura é constituída pela fala compreensiva e sintonizada numa disposição, ou seja, que tenha o seu pre [das Da], que é e está “no-mundo”, nessa constituição ontológica, é que também traz a possibilidade ontológica de um tal desenraizamento. Mais do que um não-ser, esse desenraizamento perfaz sua “realidade” mais cotidiana e mais persistente. STMSC: §35
Durante a análise da COMPREENSÃO e da abertura do pre [das Da], fez-se referência ao lumen naturale. Denominou-se também a abertura do ser-em de clareira da presença [Dasein]. É somente nessa clareira que se torna possível qualquer visão. A visão foi concebida na perspectiva do modo fundamental de abertura própria à presença [Dasein], ou seja, do compreender no sentido de uma apropriação genuína dos entes com os quais a presença [Dasein] pode relacionar-se e assumir uma atitude segundo suas possibilidades de ser essenciais. STMSC: §36
A constituição fundamental da visão mostra-se numa tendência ontológica para “ver”, própria da cotidianidade. Nós a designamos com o termo curiosidade. Em suas características, a curiosidade não se limita a ver, exprimindo a tendência para um tipo especial de encontro perceptivo com o mundo. Interpretaremos esse fenômeno com um propósito fundamentalmente ontológico-existencial. Não limitaremos a sua orientação pelo conhecimento que, já cedo e na filosofia grega, foi concebido, não por acaso, segundo o “prazer de ver”. O tratado que figura em primeiro lugar na coletânea dos escritos ontológicos de Aristóteles começa com a seguinte frase: pantes anthropoi tou eidenai oregontai physei (Metafísica, A 1, 980 a), “no ser do homem reside, de modo essencial, o acurar do ver”. Assim começa uma investigação que procura descobrir a origem da pesquisa científica acerca dos entes e de seu ser a partir deste modo de ser da presença [Dasein]. A interpretação grega da gênese existencial da ciência não é casual. Aquilo que se pressignou na sentença de Parmênides – to gar auto noein estin te kai einai – chega, nessa interpretação, a uma COMPREENSÃO temática e explícita. O ser é tudo que se mostra numa percepção puramente intuitiva, e somente esse tipo de ver descobre o ser. A verdade originária e autêntica reside na intuição pura. Desde então, essa tese tem sido o fundamento da filosofia ocidental. Dela a dialética de Hegel retirou o seu moto e somente à sua base é que se tornou possível. STMSC: §36
Se, na convivência cotidiana, tanto o que é acessível a todo mundo quanto aquilo de que todo mundo pode dizer qualquer coisa vêm igualmente ao encontro, então já não mais se poderá distinguir, na COMPREENSÃO autêntica, o que se abre do que não se abre. Essa ambiguidade não se estende apenas ao mundo mas, também, à convivência como tal e até mesmo ao ser da presença [Dasein] para consigo mesma. STMSC: §37
A falação abre para a presença [Dasein] o ser, em compreendendo, para o seu mundo, para os outros e para consigo mesma, mas de maneira a que esse ser para… conserve o modo de uma oscilação sem solidez. A curiosidade abre toda e qualquer coisa, de maneira que o ser-em esteja em toda parte e em parte nenhuma. A ambiguidade não esconde nada à COMPREENSÃO de presença [Dasein], mas só o faz para rebaixar o ser-no-mundo ao desenraizamento do em toda parte e em parte nenhuma. STMSC: §38
Tornando-se desse modo tentação, a interpretação pública mantém a presença [Dasein] presa em sua decadência. A falação e a ambiguidade, o já ter visto tudo e já ter compreendido tudo, perfazem a pretensão de que a abertura da presença [Dasein], assim disponível e dominante, seria capaz de lhe assegurar a certeza, a autenticidade e a plenitude de todas as possibilidades de seu ser. A certeza de si mesmo e a decisão do impessoal espalham uma suficiência crescente no tocante à COMPREENSÃO própria e disposta. A pretensão do impessoal, de nutrir e dirigir toda “vida” autêntica, tranquiliza a presença [Dasein], assegurando que tudo “está em ordem” e que todas as portas estão abertas. O ser-no-mundo da decadência é, em si mesmo, tanto tentador como tranquilizante. STMSC: §38
Essa tranquilidade no ser impróprio não conduz, todavia, à inércia e à inatividade. Ao contrário, move para “promoções” desenfreadas. O decair no “mundo” já não tem mais repouso. A tranquilidade tentadora aumenta a decadência. No tocante à interpretação da presença [Dasein], pode surgir a convicção de que compreender as culturas mais estranhas e a sua “síntese” com a própria cultura levaria a um esclarecimento verdadeiro e total da presença [Dasein] a seu próprio respeito. A curiosidade multidirecionada e a inquietação de tudo saber dá a ilusão de uma COMPREENSÃO universal de presença [Dasein]. Mas o que propriamente se deve compreender permanece, no fundo, indeterminado e inquestionado; não se compreende que compreender é um poder-ser que só pode ser liberado na presença [Dasein] mais própria. Essa comparação de si mesma com tudo, tranquila e que tudo “compreende”, move a presença [Dasein] para uma alienação na qual se lhe encobre o seu poder-ser mais próprio. O ser-no-mundo decadente, tentador e tranquilizante é também alienante. STMSC: §38
A interpretação ontológico-existencial não se refere, portanto, a uma fala ôntica sobre a “corrupção da natureza humana”, não apenas porque lhe faltam os recursos necessários, mas também porque a sua problemática antecede qualquer enunciado sobre corrupção ou incorruptibilidade. A decadência é um conceito ontológico de movimento. Do ponto de vista ôntico, não fica decidido se o homem foi ou não “sorvido no pecado”, se está ou não no status corruptionis, se transmigrou para o status integritatis ou se encontra num estado intermediário, isto é, no status gratiae. Fé e “visão de mundo” é que deverão recorrer às estruturas existenciais explicitadas, a fim de poderem emitir tais e tais enunciados e enunciar a presença [Dasein] como ser-no-mundo, supondo-se evidentemente que seus enunciados também pretendam uma COMPREENSÃO conceitual. STMSC: §38
A interpretação ontológica da presença [Dasein] como cura está muito distante daquilo que é acessível para a COMPREENSÃO pré-ontológica de ser ou mesmo para o conhecimento ôntico dos entes, da mesma forma que toda análise ontológica se distancia daquilo que conquista. Não é de admirar que o entendimento comum estranhe o que se conhece ontologicamente, já que considera apenas o que conhece onticamente. Apesar disso, o ponto de partida ôntico da interpretação ontológica da presença [Dasein] como cura, aqui pretendida, pode parecer artificial e meramente teórico; para não se falar da violência visível ao afastar a definição tradicional e consagrada do homem. Faz-se, pois, necessária uma confirmação pré-ontológica da interpretação existencial da presença [Dasein] como cura. Essa, por sua vez, consiste em que a presença [Dasein] desde cedo, quando se pronunciou sobre si mesma, fosse interpretada como cura (cura, em latim), embora apenas pré-ontológicamente. STMSC: §39
A interpretação ontológica da presença [Dasein] trouxe para o conceito existencial de cura a interpretação pré-ontológica que esse ente se deu como “cura”. A analítica da presença [Dasein], porém, não visa a uma fundament