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GA54:228-230 – Criatura e Aberto

A quarta estrofe do Dies irae, que talvez alguns tenham no ouvido, segundo a composição de Verdi, diz: Mors stupebit et natura Cum resurget creatura ludicanti responsura. “A morte paralisa tudo o que emerge quando as criaturas todas se levantam para responder ao seu juiz.” Se, porém, Rilke coloca “a criatura” (Kreatur) em oposição ao homem e essa oposição é o único tema da oitava elegia, então a palavra “criatura” não pode significar creatura no sentido do todo da criação (Schöpfung). A nítida delimitação dessa palavra na linguagem de Rilke exige uma interpretação das Elegias de Duíno como poesia unitária, e especificamente em sua conexão com os Sonetos a Orfeu, que muitas vezes vão bem mais além. Mas agora não é ocasião para isso, e, além do mais, nos faltam ainda as “pressuposições hermenêuticas” (hermeneutischen Voraussetzungen) que necessitariam ser recolhidas da própria poesia de Rilke.

A palavra “criatura” (Kreatur), na poesia de Rilke, refere-se a “seres criados” (Geschöpfe) no sentido estrito, isto é, de “seres vivos” (Lebewesen), com exclusão do homem. Este uso da palavra “criatura” e “ser criado” não se refere à criação do criador, à maneira da fé cristã, mas “criatura” e “ser criado” são nomes para os seres vivos que, em distinção dos seres vivos dotados de razão, ou seja, o homem, são peculiarmente “indefesos” e “miseráveis”, e não sabem se ajudar. “A criatura” é, antes de tudo, “o animal”]. Uma vez mais deveria ser enfatizado que criatura não está sendo distinguida aqui do “creator” e, portanto, não deve ser colocada em relação a Deus através de uma tal distinção. Em vez disso, “a criatura” é o ser vivo não-racional em diferença do ser racional. Mas Rilke não toma o “ser criado” “não-racional” (unvernünftige) de acordo com a visão usual, como o ser menos potente, comparado com o mais alto, o mais potente, o ser humano. Rilke inverte a relação do poder do homem e das “criaturas” (isto é, animais e plantas). Essa inversão é o que é expresso poeticamente pela elegia. A inversão da relação de dignidade do homem e animal é realizada com respeito ao que ambos os “seres vivos” são respectivamente capazes em termos “do aberto”. O “aberto” (Offene) é, dessa forma, o que determina em sua vigência ambos e todos os entes. É isso, então, o próprio ser? Certamente. Assim, tudo depende disso, de que reflitamos sobre o “sentido” no qual o ser dos entes é experimentado e dito aqui. “O aberto” não é sem relação com a αλήθεια, se esta é a essência ainda encoberta do ser. Como poderia ser de outro modo? Mas “o aberto” segundo a palavra de Rilke e o “aberto” pensado como a essência e a verdade da αλήθεια são extremamente distintos, tão longinquamente distintos como o começo do pensar ocidental e a completude da metafísica ocidental — e, no entanto, precisamente se copertencem, como o mesmo. “Com todos os olhos a criatura vê o aberto. Somente nossos olhos…” não veem o aberto, não imediatamente. O homem vê o aberto tão pouco, que ele necessita do animal para ver. O quinto e sexto versos dizem claramente: “O que está fora, sabemos apenas pela fisionomia do animal…” O que Rilke pensa com o aberto, só podemos compreender e, como tal, propriamente questionar, se primeiramente virmos claramente que o poeta tem em mente a diferença entre o animal e o ser vivo desprovido de razão, por um lado, e o homem, por outro lado. Guardini, ao contrário, interpreta essa elegia como se, com base na relação “da criatura” — diríamos como ens creatum — com o “aberto”, o poema fosse uma espécie de prova da existência de um Deus criador.

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