====== GA6 – tradição ====== Tradition, traditio, Überlieferung, überliefern, liefern, traditionell, überliefert, überkommen, Erbe, Erbschaft Se o pensamento nietzschiano reúne a **tradição** até aqui do pensamento ocidental e a consuma segundo um aspecto decisivo, então a confrontação com Nietzsche torna-se uma confrontação com o pensamento ocidental até aqui. GA6MAC I Levaremos a cabo essa consideração por meio de duas perguntas: 1) O que Nietzsche tem em vista com essa expressão? 2) Por que não deve causar espanto o fato de o caráter fundamental do ente ser determinado como vontade? Comecemos com a pergunta citada por último: a concepção do ser de todo ente como vontade acha-se na linha da melhor e maior **tradição** da filosofia alemã. GA6MAC I Antes da caracterização genérica do conceito nietzschiano de vontade, foi feita uma breve referência à **tradição** da metafísica, a fim de indicar que a concepção de ser como vontade não tem, em si, nada de estranho. GA6MAC I Na década de 1850-1860, imiscuem-se uma vez mais, com uma penetração curiosa, **tradição** autêntica e bem conservada do tempo magnífico do movimento alemão e o deserto e o desenraizamento insidiosos da existência tal como eles vieram plenamente à tona nos anos de “fundação do império”. GA6MAC I Por outro lado, foi possível considerar essa excitação da embriaguez afetiva e o desencadeamento dos “afetos” como uma salvação da “vida”, sobretudo em face do crescente empobrecimenteo e desertificação da existência por meio da indústria, da técnica e da economia em conexão com um estiolamento e esvaziamento das forças conformadoras do saber e da **tradição**; e isso para não falar da total falta de todo e qualquer estabelecimento de uma meta grandiosa para a existência. GA6MAC I A estética transforma-se em psicologia que trabalha em termos de ciências naturais, isto é, estados sentimentais são submetidos por si mesmos ao experimento, à observação e à mensuração como fatos que ocorrem; também nesse caso, Friedrich Theodor Vischer e Wilhelm Dilthey são exceções, suportadas e dirigidas pela **tradição** de Hegel e Schiller. GA6MAC I Com isso está dito de maneira genérica: a concepção nietzschiana da essência da verdade se mantém no âmbito da grande **tradição** do pensamento ocidental; e isso por mais que ela se desvie das interpretações anteriores em sua interpretação particular. GA6MAC I Depois de uma **tradição** de mais de dois mil anos e de um certo hábito de pensamento e de representação, o que é debatido aí quase não é mais para nós do que um conjunto de lugares-comuns. GA6MAC I A **tradição** deu expressamente a um de seus “diálogos” o título peri tou kalou, “Sobre o belo”. GA6MAC I Mas esse diálogo recebeu ainda outros títulos no decurso da **tradição**: Peri psyches, “Sobre a alma”; Peri tou erotos, “Sobre o amor”. GA6MAC I Essa cegueira pensa ser original, mas não faz outra coisa senão requentar as ideias recebidas e misturar interpretações legadas pela **tradição** com algo supostamente novo. GA6MAC I Tanto por si quanto em suas construções híbridas, as duas doutrinas têm, inicialmente, o primado de que se tornaram, através dos 2500 anos de **tradição**, um modo habitual de considerar as coisas. GA6MAC II No sentido pleno do termo, a palavra “existência” (ser-aí) nos diz algo que não equivale de maneira alguma ao ser humano, e que é inteiramente diverso do que Nietzsche e a **tradição** antes dele compreendem por existência (ser-aí). GA6MAC II Quando Zaratustra diz aqui “Mortos estão todos os deuses”, isso significa o seguinte: o homem atual, como o último, não é mais suficientemente forte para um dos deuses, especialmente na medida em que os deuses não podem ser apenas assumidos a partir da **tradição**; **tradição** só se cunha como poder do ser-aí onde ela é suportada pela vontade criadora, e só permanece como tal poder enquanto é suportada por tal vontade. GA6MAC II Essa representação fundamental do ente na totalidade como caos, uma representação que guiou Nietzsche mesmo antes da doutrina do retorno, tem uma significação dupla: por um lado, trata-se de fixar a representação diretriz do que constantemente vem-a-ser no sentido da representação habitual do panta pei, do eterno fluir das coisas, uma representação que Nietzsche também tomou falsamente como própria a Heráclito, assim como o fizera a **tradição** corrente; nós a denominamos mais corretamente pseudo-heraclítica. GA6MAC II Algo do gênero de uma posição metafísica fundamental só foi possível em nossa **tradição**; e enquanto se tentar alcançar tal posição futuramente, a **tradição** até aqui permanecerá insuperada, isto é, não apropriada em sua validade. GA6MAC II Em termos de gênero literário, essa configuração recebeu nos planos e nas intenções nietzschianas a face do que ele mesmo denomina, em sintonia com a **tradição**, a sua “obra capital”. GA6MAC III Na medida em que mesmo os maiores pensadores, o que significa, ao mesmo tempo, mesmo os pensadores mais solitários, não moram em um espaço supraterreno situado em algum lugar supramundano, eles são sempre cercados e tocados, influenciados, como se costuma dizer, pelos seus contemporâneos e pela **tradição**. GA6MAC III Correção é, nesse caso, compreendida como tradução de adaequatio e homoiosis Também para Nietzsche permanece de antemão decidido, e, de acordo com a **tradição**, que: verdade é correção. GA6MAC III O juízo, o enunciado de algo sobre algo, perfaz a essência do conhecimento no interior da **tradição** da metafísica ocidental; e ao conhecimento pertence o ser-verdadeiro. GA6MAC III Nietzsche não apenas parece se achar em ressonância com essa **tradição** ocidental, mas se acha de fato em ressonância com ela. GA6MAC III A que posição o pensamento e a reflexão sobre o conhecimento precisam ter sido lançados para que se chegasse a enunciados tão estranhos quanto “o conhecimento é a esquematização de um caos levada a termo segundo o nosso carecimento prático”? Ou será que essa caracterização da essência do conhecimento não é assim tão louca? Será que ela chega mesmo a ter a **tradição** do pensamento metafísico ao seu lado, de modo que todos os grandes pensadores concordariam com a visão de Nietzsche sobre o conhecimento? Caso tenhamos clareza quanto ao fato de o pensamento filosófico não poder ser medido com os padrões do saudável entendimento humano, então não poderemos mais nos espantar se essa concepção nietzschiana do conhecimento concordar tão pouco com o nosso comportamento cotidiano e com aquilo que esse comportamento sabe de si. GA6MAC III É importante ver em que medida Nietzsche explora, sim, precisa explorar as consequências mais extremas dessas decisões, porquanto pensa metafisicamente sobre o conhecimento no sentido da **tradição** de pensamento do Ocidente e de acordo com a penúria de sua própria época e do homem moderno. GA6MAC III No entanto, o que é fixo significa – segundo o sentido da **tradição** – o ente. GA6MAC III Ao acreditar que precisa distinguir a sua doutrina do “desenvolvimento da razão” da doutrina platônica de uma “ideia preexistente”, Nietzsche não está senão pensando a doutrina platônica das ideias de maneira demasiado extrínseca e superficial, de maneira consonante com Schopenhauer e com a **tradição**. GA6MAC III No entanto, também buscamos mostrar ao mesmo tempo e antes de tudo que Nietzsche procura tomar a essência da razão, totalmente no sentido da **tradição** da metafísica ocidental, a partir da visualização do princípio mais elevado do pensamento, a partir do princípio de não contradição. GA6MAC III Se entendermos o princípio de não contradição no sentido da **tradição** que se tornou dominante – com isso, de maneira não estrita e plenamente aristotélica –, ele não diz senão algo sobre o modo como o pensamento precisa proceder para ser um pensamento do ente. GA6MAC III A ideia da vontade de poder parece, porém, sobretudo em sua configuração biológica, escapar desse âmbito projetivo e antes romper com a **tradição** da metafísica por meio de uma desfiguração e de uma banalização do que consumá-la. GA6MAC IV Início é **tradição**, é passar adiante. GA6MAC IV Com isso, nega-se tudo aquilo que é fundado sobre a **tradição**, sobre a autoridade ou sobre qualquer outra validade definida. GA6MAC V Se o conhecimento humano quiser experimentar a verdade sobre o ente, então o único caminho confiável que lhe resta é adotar e preservar fervorosamente a doutrina da revelação e a sua **tradição** por meio dos doutores da Igreja. GA6MAC V A única forma adequada, na qual o conhecimento enquanto doctrina pode ser perfeitamente enunciado, é a “summa”, a reunião dos escritos doutrinários nos quais o todo do conteúdo doutrinário legado pela **tradição** é ordenado e as diversas opiniões doutrinárias podem ser colocadas à prova, aplicadas ou rejeitadas com vistas à sua concordância com as doutrinas da Igreja. GA6MAC V O conceito de sujeito emerge da nova interpretação da verdade do ente que é pensado segundo a **tradição** como ousia, hypokeimenon e subtectum; e isso pelo fato de, em razão do cogito sum, o homem se tornar aquilo que se encontra propriamente na base, aquilo quod substat, substância. GA6MAC V Nesse caso, não seriam apenas a investigação, a comunicação e a **tradição** historiológicas que jamais entrariam em jogo, mas também não haveria nunca em parte alguma uma experiência histórica e, sobretudo, não haveria uma decisão e uma ação históricas. GA6MAC V E, não obstante, Kant não pergunta qual é a conjuntura que pode haver com esse pensamento a partir de categorias, ele toma esse pensamento como um fato da razão humana, isto é, da natureza do homem, uma natureza que também se define para Kant no sentido da **tradição** antiga por meio da indicação: homo est animal rationale – o homem é um ser vivo racional. GA6MAC V O fato de se falar aqui e acolá em círculos eruditos e a partir de uma **tradição** culta de ser, de “ontologia” e de metafísica não envolve senão ressonâncias, que não possuem mais intrinsecamente nenhuma força formadora de história. GA6MAC V Por outro lado, a tentativa de pensar o ser enquanto ser com vistas à **tradição** precisa ir até o extremo, a fim de experimentar que e por que o ser não pode mais ser definido como – “ser”. GA6MAC VIII Essa **tradição**, da qual a própria metafísica detém um conhecimento e sobre a qual ela produz mais tarde relatos historiológicos, desperta a aparência de que a transformação que seguiu continuamente o seu curso desde o começo essencial da metafísica se mostraria como a conservação do autêntico elemento fundamental e, ao mesmo tempo, como o seu desdobramento progressivo. GA6MAC VIII De acordo com a **tradição** do começo da metafísica desde Aristóteles, tudo aquilo que é propriamente ente é um hypokeimenon, que se determina no tempo subsequente como subiectum. GA6MAC VIII A predominância do exigere, contudo, não permite que se perca o caráter de representação do ser; pois esse caráter guarda a **tradição** da essência do ser no começo e no início, uma essência como a qual o presentar se anuncia. GA6MAC VIII