O comum-pertencer de homem e ser ao modo da recíproca provocação nos faz ver, de uma proximidade desconcertante, o fato e a maneira como o homem está entregue como propriedade ao ser e como o ser é apropriado ao homem. Trata-se de simplesmente experimentar este ser próprio de, no qual homem e ser estão reciprocamente a-propriados, experimentar que quer dizer penetrar naquilo que digamos acontecimento-apropriação (NT: O filósofo procura delimitar aquele âmbito em que homem e ser acontecem e se apropriam reciprocamente (no caso da relação homem-técnica, chamado arrazoamento) pela palavra Ereignis. Traduzo-a por acontecimento-apropriação, como os franceses por evénément-appropriation. Na palavra alemã se escondem ambos os pólos expressos pelo termo composto, usado pelas duas línguas românticas em questão. Em seu livro Unterwegs zur Sprache Heidegger comenta seu uso da palavra Ereignis: “Hoje, quando aquilo que ainda quase não foi pensado ou pensado pela metade é logo entregue apressadamente a toda forma de publicidade, parecerá a muitos inacreditável o fato de o autor ter utilizado já, em seus manuscritos, há mais de vinte e cinco anos, a palavra acontecimento-apropriação para a coisa que aqui pensa. Esta coisa, ainda que simples em si mesma, permanece, em primeiro lugar, difícil de ser pensada porque o pensamento deve desacostumar-se a cair no engano de que aqui se pensa ‘o ser’ como acontecimento-apropriação. O acontecimento-apropriação é essencialmente outra coisa, porque muito mais rico que qualquer possível determinação metafísica do ser. Pelo contrário, o ser pode ser pensado, no que respeita a sua origem essencial, a partir do acontecimento-apropriação” (p. 260).) A palavra acontecimento-apropriação é tomada da linguagem natural. “Er-eignen” (acontecer) significa originariamente: “er-äugnen”, quer dizer, descobrir com o olhar, despertar com o olhar, apropriar. A palavra acontecimento-apropriação deve, agora, pensada a partir da coisa apontada, falar como palavra-guia a serviço do pensamento. Como palavra-guia assim pensada, ela se deixa traduzir tão pouco quanto a palavra-guia grega lógos ou a chinesa Tao. A palavra acontecimento-apropriação não significa mais aqui aquilo que em geral chamamos qualquer acontecimento, uma ocorrência. A palavra é empregada agora como singulare tantum. Aquilo que designa só se dá no singular, no número da unidade, ou nem mesmo num número, mas unicamente. O que no arrazoamento, como constelação de ser e homem, experimentamos através do moderno universo da técnica, é um prelúdio daquilo que se chama acontecimento-apropriação. Este, contudo, não permanece necessariamente em seu prelúdio. Pois no acontecimento-apropriação fala a possibilidade de ele poder superar e realizar em profundidade o simples imperar do arrazoamento num acontecer mais originário. Uma tal superação e aprofundamento do arrazoamento, partindo do acontecimento-apropriação e nele penetrando, traria a redenção historial – portanto, jamais unicamente factível pelo homem – do universo técnico, de sua ditadura, para pô-lo a serviço no âmbito através do qual o homem encontra mais.autenticamente o caminho para o acontecimento-apropriação. MHeidegger: IDENTIDADE E DIFERENÇA
Para onde conduziu o caminho? Para a entrada de nosso pensamento naquele elemento simples que designamos no rigoroso sentido verbal o acontecimento-apropriação. Parece que agora corremos o risco de orientarmos, com demasiada despreocupação, nosso pensamento para algum vago universal distante, enquanto com aquilo que quer designar a palavra acontecimento-apropriação somente dirige seu imediato apelo para nós o mais próximo daquele próximo em que já estamos repousando. Pois o que poderia ser mais próximo de nós que aquilo que nos aproxima daquilo a que pertencemos, aquilo em que somos dóceis participantes, o acontecimento-apropriação? O acontecimento-apropriação é o âmbito dinâmico em que homem e ser atingem unidos sua essência, conquistam seu caráter historial, enquanto perdem aquelas determinações que lhes emprestou a metafísica. MHeidegger: IDENTIDADE E DIFERENÇA
Pensar o acontecimento (-apropriação) como acontecimento-apropriação significa trabalhar na edificação deste âmbito dinâmico. O material de construção para esta construção dinâmica o pensamento o recebe da linguagem. Pois ela é o movimento mais delicado, mas também mais frágil, que tudo retém na construção suspensa do acontecimento-apropriação. Na medida em que nossa essência está entregue à linguagem como propriedade, residimos no acontecimento-apropriação. MHeidegger: IDENTIDADE E DIFERENÇA
Atingimos agora um ponto de nossa caminhada, em que se impõe a questão, ainda que aproximativa, mas inevitável: que tem a ver o acontecimento-apropriação com a identidade? Resposta: nada. Pelo contrário, a identidade tem muito, quando não tudo, a ver com o acontecimento-apropriação. Em que medida? Respondemos retornando uns poucos passos pelo caminho andado. MHeidegger: IDENTIDADE E DIFERENÇA
O acontecimento-apropriação apropria homem e ser em sua essencial comunidade. Um primeiro e embaraçoso clarão do acontecimento-apropriação descobrimos no arrazoamento. Este constitui a essência do universo moderno da técnica. No arrazoamento entrevemos um comum-pertencer de homem e ser, em que o deixar pertencer primeiramente determina a espécie de comunidade e sua unidade. Acompanhou-nos na questão pelo comum-pertencer, em que o pertencer tem prioridade sobre a comunidade, o dito de Parmênides: “Pois o mesmo é tanto pensar como ser”. A questão do sentido deste mesmo é a questão da essência da identidade. A doutrina da metafísica apresenta a identidade como um traço fundamental no ser. Mas agora se mostra: ser com o pensar faz parte de uma identidade, cuja essência brota daquele comum-pertencer que designamos acontecimento-apropriação. A essência da identidade é uma propriedade do acontecimento-apropriação. MHeidegger: IDENTIDADE E DIFERENÇA
Caso, em nosso ensaio de conduzir nosso pensamento ao lugar de origem da essência da identidade, algo tiver consistência, que terá acontecido com o título da conferência? O sentido do título “O princípio da Identidade” se teria transformado. O princípio se apresenta primeiro na forma de um primeiro princípio que pressupõe a identidade como um traço no ser, quer dizer, no fundamento do ente. Este princípio no sentido de um enunciado transformou-se a caminho num princípio que é uma espécie de salto que, distanciando-se do ser como fundamento do ente, salta no abismo (sem-fundamento). Mas este abismo não é nem o nada vazio nem o negro caos, mas: o acontecimento-apropriação. No acontecimento-apropriação vibra a essência daquilo que a linguagem fala, a linguagem que certa vez designamos como a casa do ser. Princípio da identidade diz agora: um salto exigido pela essência da identidade porque dele necessita, se, entretanto, o comum-pertencer de homem e ser for destinado a alcançar a luz essencial do acontecimento-apropriação. MHeidegger: IDENTIDADE E DIFERENÇA
O pensamento se transformou a caminho desde o princípio como uma enunciação sobre a identidade para o princípio como salto para dentro da origem essencial da identidade. Por isso o pensamento descobre, encarando o presente, além da situação do homem, a constelação de ser e homem, a partir daquilo que a ambos apropria numa comunidade, a partir do acontecimento-apropriação. Supondo que nos aguarde a possibilidade de que o arrazoamento, recíproca provocação de homem e ser para o cálculo do que é calculável, nos convoque e se nos explicite como acontecimento-apropriação que desapropria homem e ser entregando-os àquilo que lhes é próprio, então estaria livre o caminho em que o homem experimenta de maneira mais originária o ente, a totalidade do moderno universo da técnica, da natureza e da história, e, antes de todos, o ser deles. MHeidegger: IDENTIDADE E DIFERENÇA
No destinar do destino do ser, no alcançar do tempo, mostra-se um apropriar-se trans-propriar-se, do ser como presença e do tempo como âmbito do aberto, no interior daquilo que lhes é próprio. Aquilo que determina a ambos, tempo e ser, o lugar que lhes é próprio, denominamos: das Ereignis (o acontecimento-apropriação). (Ainda que Ereignis possa ser traduzido por acontecimento-apropriação, mantém-se doravante o termo alemão, pois de maneira alguma é possível transpor para o vernáculo toda a riqueza de conotações do termo original. Heidegger mesmo dá-me razão: “Ereignis como palavra-guia deixa-se tão pouco traduzir quanto a palavra-guia grega lógos ou a chinesa Tao”. Vide Que É Isto – a Filosofia? – Identidade e Diferença. (N. do T.)) O que nomeia esta palavra, somente podemos pensar agora a partir daquilo que se manifesta na vista prévia sobre ser e sobre tempo como destino e como alcançar, onde é o lugar de tempo e ser. A ambos, tanto ser como tempo, denominamos questões. O “e” entre ambos deixou sua relação recíproca no indeterminado. MHeidegger: TEMPO E SER
Com a questão aparentemente inofensiva: Que é o Ereignis?, exigimos uma informação sobre o ser do Ereignis. Mas se agora o ser mesmo se apresenta como algo que pertence ao Ereignis, e somente a partir dele recebe a determinação de presença, então regredimos, com a questão levantada, até aquilo que, em primeiro lugar, exige sua determinação: o ser a partir do tempo. Esta determinação mostrou-se, a partir da vista prévia sobre o “Se”, que dá, pelo exame dos modos de dar mutuamente imbricados, o destinar e o alcançar. Destinar do ser repousa no alcançar iluminados do múltiplo presentar, no âmbito aberto do espaço-de-tempo. O alcançar, porém, repousa, junto ao destinar, no acontecimento-apropriação, no acontecer-apropriar. Este, isto é, o elemento característico do Ereignis, determina também o sentido daquilo que aqui é denominado: o repousar. MHeidegger: TEMPO E SER
Assim também já foi dito muito, no pensamento de Heidegger, sobre aquilo e com respeito àquilo que o Ereignis acontece-apropria, ainda que de maneira provisória e como simples aceno. Pois a este pensamento importa apenas a preparação da entrada para o interior do Ereignis. O fato de do Ereignis só restar dizer: O Ereignis acontece-apropria, não exclui, portanto, mas inclui que se pense toda uma riqueza do que deve ser pensado no próprio Ereignis. E isto tanto mais que sempre fica para ser pensado no que se refere ao homem, à coisa, aos deuses, terra e céu, com referência a tudo que foi acontecido-apropriado, que faz fundamentalmente parte do Ereignis (acontecimento-apropriação) a Ereignis (a desapropriação). Isto, porém, encerra a questão: desapropriação para onde? Direção e sentido desta questão não foram mais examinados. MHeidegger: PROTOCOLO DO SEMINÁRIO SOBRE A CONFERÊNCIA “TEMPO E SER”