Um caso limite muito importante da obra literária é constituído pela obra científica. Ela distingue-se sob vários pontos de vista da obra de arte literária embora lhe esteja relativamente muito próxima. Denota urpa estruturação em estratos inteiramente análoga à da obra literária; não obstante, os elementos de cada um dos estratos singulares assim como os papéis respectivos são nela em parte diferentes. Todas estas diferenças estão em íntima relação com a função de natureza distinta que a obra científica desempenha na vida espiritual do homem. Consiste ela na fixação dos resultados de conhecimento adquiridos e na sua transmissão a outros sujeitos conscientes. É esta função precisamente que a obra literária, no sentido em que a tomamos, não poderá exercer.
As diferenças entre os dois tipos de obras que entram aqui antes de mais em consideração são as seguintes:
1. As frases que aparecem numa obra científica são quase exclusivamente autênticos juízos. Elas podem ser verdadeiras ou falsas mas reivindicam, em todo o caso, essencialmente a pretensão de verdade. Eis porque desaparece aqui tanto a modificação quase-judicativa das frases afirmativas como também a modificação análoga de todas as restantes que nós julgámos características da obra literária. Mesmo quando por acaso surge uma interrogação meramente «retórica», que, como tal, em princípio poderia ser substituída por uma frase afirmativa, essa interrogação reivindica em todo o caso a pretensão a ser uma interrogação verdadeira.
2. À estrutura da obra científica pertencem, naturalmente, tanto os correlatos de frases puramente intencionais (e quase exclusivamente relações objectivas) como as objectividades apresentadas. Uma vez que as frases aqui são predominantemente juízos autênticos é através do conteúdo do correlato puramente intencional da frase que passa o raio director das significações nelas contidas, de modo que as frases se referem a comportamentos de coisas objectivamente existentes ou aos objectos neles abrangidos. As relações objectivas puramente intencionais são em princípio «transparentes» e só se distinguem dos comportamentos de coisas objectivamente existentes quando se trata de frases erradas ou pelo menos duvidosas e até mesmo quando os respectivos comportamentos de coisas objectivamente existentes não foram ainda apreendidos [1]. Seria um erro pensar que as objectividades apresentadas na obra científica desempenham uma função de reprodução e que é só por esta função que as frases entram em relação com as objectividades ontologicamente autônomas reproduzidas. Pode dar-se isto, é certo, não quando a obra científica está a desempenhar a sua função própria mas apenas numa configuração especial que lhe é imposta quando é captada como uma «concepção» do autor em causa, tal como muitas vezes acontece, p. ex., no caso de uma análise histórica de obras filosóficas. Só então exercem as objectividades apresentadas as funções de reprodução e de representação e a obra na sua totalidade aproxima-se, sob este ponto de vista, de muitas obras literárias.
3. Numa obra científica podem aparecer tanto no estrato das formações fónico-linguísticas como no das unidades de significação particularidades que vistas em si mesmas encerram qualidades de valor estético e em conjunto com momentos correspondentes de outros estratos levam a uma polifonia valiosamente qualitativa. Mas se isto não é excluído pela essência da obra científica, por outro lado não lhe é de modo algum necessário; constitui para a obra científica um luxo dispensável. A obra científica não está de modo algum concebida para conter tais peculiaridades. Está planeada no sentido de, em [362] primeiro lugar, conter frases verdadeiras e encerrar particularidades estruturais que lhe possibilitem a acção na função mediadora do conhecimento. Tudo o resto tem de ser subordinado a este objectivo principal. Eis o que, precisamente, não só não é essencial para a obra literária e em especial para a obra de arte literária mas está até excluído no caso de autênticas obras de arte. Eni que consistem na estrutura da obra as particularidades que daí resultam e de que modo a fazem distinguir da obra de arte literária, este seria um tema para uma análise especial de grande amplitude.
4. As obras científicas podem conter em si, como um estrato especial, multiplicidades de aspectos esquematizados postos à disposição caso precisamente as frases se relacionem com objectos capazes de aparecer em multiplicidades de aspectos. Mas se estes aspectos estão presentes na obra não deixam, no entanto, de desempenhar nela um papel completamente diferente do desempenhado na obra de arte literária. Interessam simplesmente como meios auxiliares úteis e muitas vezes até indispensáveis à transmissão dos resultados de conhecimento. Os momentos decorativos eventualmente presentes são nela inteiramente dispensáveis e muitas vezes até perturbadores.
5. Finalmente, a revelação eventualmente ocorrente das qualidades metafísicas só é essencial quando uma determinada qualidade metafísica em si mesma pertence ao tema do resultado do conhecimento adquirido e transmitido ou pelo menos o auxilia na sua transmissão. Em todos os outros casos a sua revelação não só não é essencial mas pode até actuar contrariamente à função capital da obra científica e deve, portanto, evitar-se o mais possível.
Mutatis mutandis, também o que dissemos poderá ser extensivo ao caso da simples informação, i. é, da pura reportagem. Não pretendemos ocupar-nos deste assunto com mais pormenores.