Página inicial > Hermenêutica > Graham Harman (2002:84-86) – “a coisa formaliter” (ou formallogisches (…)

Graham Harman (2002:84-86) – “a coisa formaliter” (ou formallogisches gegenständliches Etwas)

sexta-feira 25 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

[…] Saber como revelar entidades de fora da esfera do mundo-da-vida, diz ele, é o princípio básico da fenomenologia. [GA56-57  ] Mas é aqui que algo completamente inesperado acontece. Heidegger nos diz que há dois tipos de teorização. [1]

Por um lado, diz ele, podemos exibir entidades de uma forma que se preocupe com sua vinculação a um determinado nível de referência. Digamos que, em meio ao império global de referência, eu encontre um objeto colorido. Começo tendo uma espécie de relação indistinta e não temática com ele. Mas depois de refletir um pouco, percebo explicitamente que o objeto é marrom. Após uma maior abstração, percebo que o marrom é uma cor, de modo que a categoria “cor” já se aplicava àquele objeto borrado que se infiltrou em minha visão vindo de fora do mundo da vida. A cor, por sua vez, pode dar lugar a categorias ainda mais profundas que a englobam: “percepção”, ‘experiência’, ‘realidade’ e assim por diante. Em cada caso, há bases discerníveis na situação em questão para tematizar as coisas dessa maneira: “Eu chamo isso de ligação específica aos níveis [spezifische Stufengebundenheit] das etapas do processo de desvivência.” Mais tarde, no mesmo curso [GA56-57  ], a coisa vista como algo específico será chamada de “algo do tipo objeto” [objektartiges Etwas].

Mas, por outro lado, há outro tipo de teorização que não tem nada a ver com essa descoberta passo a passo dos níveis. Em qualquer momento do processo, seja no nível de “borrão” ou “marrom” ou “cor” ou “percepção”, também podemos parar e observar que qualquer uma dessas coisas é pelo menos algo em vez de nada. Podemos dizer “o borrão é”, “o marrom é”, “a cor é”, “a percepção é”. Essa possibilidade pertence a qualquer parte do ambiente que possamos estar discutindo a qualquer momento. Então, não apenas os ser-ferramentas têm uma natureza dupla como efeito e aparência: além disso, a própria aparência tem um caráter duplo. E com isso, encontramos um tema filosófico realmente novo, por mais árido que possa parecer à primeira vista. Pela primeira vez, o eixo único e repetitivo da ontologia fundamental ganha uma segunda dimensão.

Dos dois tipos de teoria descritos por Heidegger, diz-se que aquela que pertence a “algo em geral” está conectada com “o mais alto princípio de referencialidade”. O fato de uma coisa ser qualquer coisa em vez de nada é considerado seu sentido final, a realidade fundamental que obscurece qualquer uma das qualidades específicas que ela possa manifestar. Essa “potencialidade mais elevada para a vida”, como diz Heidegger, esse “algo em tudo”, também é chamado de “a coisa formaliter” (ou formallogisches gegenständliches Etwas). Não deve ser um choque para os admiradores de Ser e Tempo   quando o jovem Heidegger nos diz que esse “formaliter” não é um simples gênero, nem uma designação vazia e presente: “No ’algo’, como aquilo que pode ser experimentado, não devemos ver algo radicalmente sujeito à teoria e não vivido, mas sim um momento essencial da vida em si e por si mesmo, um momento que está em estreita conexão com o caráter de evento das experiências vividas como tal.”

O “algo em geral” não é um conceito, mas sim um Ereignis. É nada menos do que o ser da coisa: “É um fenômeno básico que pode ser experimentado de forma compreensiva, por exemplo, na situação vivida de deslizar de um mundo-vida para outro que é genuinamente diferente, ou em momentos de vida especialmente intensa… ” Essa observação impressionante de 1919 é um precursor inesperado de algumas das mais belas passagens de 1935: “A pergunta [“Por que existe algo em vez de nada?”] aparece em momentos de grande desespero, quando as coisas tendem a perder todo o seu peso e todo o sentido se torna obscuro…. Ela está presente em momentos de alegria…. A pergunta surge em nossos momentos de tédio… ” [GA40  :1]

Mas argumentei anteriormente que o comportamento teórico nunca poderia ser considerado como uma manifestação especialmente pura da estrutura-como. A coisa revelada pela teoria sempre fica atrás de qualquer objetivação possível dela. Agora, a mesma coisa deve se aplicar aos estados de espírito reveladores exemplares (desespero, alegria, angústia). Pode-se dizer vagamente que o “algo em geral” aparece com especial clareza em estados de espírito desse tipo - mas não é idêntico a esses estados de espírito, nem pode se tornar corporalmente presente neles. O “algo em geral” não é apenas algo que não é primariamente visto, mas também algo que não é primariamente sentido, como em uma sintonização. Muito mais do que algo visto ou sentido, é algo que é, qualquer que seja o nosso estado de espírito em um dado momento. Nem o segundo tipo de teoria de Heidegger nem a própria Angústia têm qualquer capacidade exemplar de apresentar o simples algo como esse simples algo em toda a sua pureza, de apresentar o Sein a nós em pessoa. Mas isso significa que o “algo em geral” deve, de alguma forma, estar sempre presente: não apenas na angústia ou no tédio, mas também na estupefação, na embriaguez e na fúria de um louco. Como pertence inerentemente até mesmo aos tipos mais primitivos de percepção, deve estar presente também para o coiote raivoso e a borboleta ferida.


Ver online : Graham Harman


HARMAN, Graham. Tool-Being. Heidegger and the Metaphysics of Objects. Chicago: Open Court, 2002


[1Interestingly, the two show a nearly exact correspondence with Husserl’s distinction between “Generalisierung” and “Formalisierung.” (See Ideen I, p. 26 ff.) In fact, Heidegger uses precisely these terms in his 1920/21 presentation of the same theme (GA60, Phänomenologie des religiösen Lebens, pp. 57-62). In some respects, this later treatment offers a superior exposition. I have chosen to discuss 1919 instead due to its lucid early analysis of equipment, as well as its unique status as Heidegger’s earliest surviving lecture course. But there can be no question that the ultimate source of Heidegger’s second axis is Husserl’s difference between the eidetic and phenomenological reductions, with the necessary changes being made to account for Heidegger’s less idealistic stance.