Página inicial > Gesamtausgabe > GA6:365-367 – metafísica das ciências

NIETZSCHE I [GA6T1]

GA6:365-367 – metafísica das ciências

O suposto biologismo de Nietzsche

sexta-feira 19 de junho de 2020, por Cardoso de Castro

Excerto de HEIDEGGER, Martin. Nietzsche   (volume único). Tr. Marco Antonio Casanova  . Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014, p. 365-367

De acordo com a etimologia mencionada, “biologia” significa “doutrina da vida” - ou melhor: doutrina do vivente. O nome designa agora o seguinte: a investigação científica dos fenômenos, dos processos e das leis próprios ao vivente, que são determinados por meio dos domínios da vida vegetal, animal e humana. Botânica e zoologia, anatomia, fisiologia e psicologia do homem formam as áreas especiais da biologia antes das quais ou sobre as quais é por vezes alocada uma “biologia geral”. Toda biologia já pressupõe como ciência uma circunscrição realizada de maneira mais ou menos expressa e inequívoca dos fenômenos que perfazem o seu domínio de objetos. Esse domínio é o domínio do vivente. Um conceito prévio do que distingue e delimita um vivente como tal, um conceito prévio da vida, acha-se uma vez mais na base da circunscrição desse domínio. O domínio essencial no qual a biologia se movimenta nunca pode ser estabelecido e fundamentado pela própria biologia como ciência. Ao contrário, ele sempre precisa ser pressuposto, assumido e ratificado. Isso é válido para toda e qualquer ciência.

Toda ciência repousa sobre proposições relativas à região do ente no interior da qual a respectiva pesquisa se mantém e se movimenta. Essas proposições sobre o ente, sobre o que é e como é, proposições que delimitam e estabelecem a área, [366] são proposições metafísicas. Elas não apenas não podem ser comprovadas com os conceitos e as provas oriundas das respectivas ciências, mas não podem nem mesmo ser pensadas de maneira apropriada por meio daí.

O que um vivente é e o fato de ele ser algo desse gênero nunca são decididos pela biologia como biologia. Ao contrário, o biólogo como biólogo sempre faz uso dessa decisão como uma decisão que já aconteceu, e esse uso é, em verdade, necessário para ele. No entanto, se o biólogo como essa pessoa determinada toma uma decisão sobre o que deve ser interpelado discursivamente como vivente, então, contudo, ele não leva a termo essa decisão como biólogo, nem tampouco com os meios, as formas de pensamento e de comprovação de sua ciência, mas fala como metafísico, como um homem que pensa para além dessa área em questão o ente na totalidade.

[…]

Para além de um mero acúmulo de conhecimentos, toda e qualquer ciência só é um saber, isto é, a preservação de um conhecimento autenticamente decisivo e, por conseguinte, cocriador da história, na medida em que - falando em termos do modo de pensar até aqui - pensa metafisicamente. Para além de uma dominação meramente calculadora de uma área, toda ciência só se mostra como um saber autêntico na medida em que se fundamenta metafisicamente - ou na medida em que concebeu essa fundamentação como uma necessidade insubstituível para a sua consistência essencial.

Com isso, o desenvolvimento das ciências sempre pode transcorrer segundo dois aspectos diversos. As ciências podem se configurar em direção a um domínio cada vez mais amplo e mais seguro dos objetos, conformar seus modos de procedimento a esse domínio - e aí encontrar sua satisfação. No entanto, as ciências também podem se desdobrar ao mesmo tempo como saber autêntico e estabelecer a partir desse saber os limites do que é digno do saber científico.

Essa referência deve mostrar apenas que o campo de toda ciência - ou seja, para a biologia o campo do vivente - é delimitado por um saber e pelas proposições pertinentes que não possuem caráter científico. Podemos denominá-las proposições de campo. Tais proposições - na zoologia, por exemplo, as proposições sobre a essência do animal - facilmente despertam - visto a partir do respectivo trabalho particular de pesquisa - a impressão de serem “genéricas”, isto é, indeterminadas e confusas. Por isso, os pesquisadores, em particular os das ciências “exatas”, olham na maioria das vezes com desconfiança para tais reflexões.

[367] Agora, enquanto são tomadas apenas a partir da esfera de visão da ciência e avaliadas em função de seus modos de procedimento, tais considerações metafísicas são de fato indeterminadas e intangíveis. Todavia, isso não significa que esse caráter do indeterminadamente genérico pertence à essência de reflexões assim constituídas. Ao contrário, isso não nos diz senão uma coisa: a meditação metafísica sobre a essência do campo de uma ciência parece - considerada no interior da esfera de visão da ciência em questão - indeterminada e infundada. No entanto, a esfera de visão da respectiva ciência não é estreita demais apenas para a apreensão de sua própria essência, ela é pura e simplesmente insuficiente. Pensar filosoficamente - o pesquisador das ciências frequentemente acha que isso não significa senão pensar de maneira mais genérica e indeterminada do que ele, que pesquisa exatamente, está habituado a pensar. Ele esquece, porém, ou melhor, ele nunca chegou a tomar consciência, nunca aprendeu e nunca quis aprender que, com a requisição da meditação metafísica, é exigido um modo de pensar de um tipo diverso. A passagem do pensar metafísico para a meditação metafísica é essencialmente mais estranha e, por isso, mais difícil do que a passagem do pensamento pré-científico, cotidiano, para o modo de pensar de uma ciência. A passagem para a metafísica é um salto. A passagem para a ciência é um constante desdobramento das determinações anteriores de um modo de representação já subsistente. (p. 365-367)


Ver online : NIETZSCHE I [GA6T1]