Gadamer (VM): universo hermenêutico

O fato de a auto-interpretação ter alcançado em todos esses âmbitos uma primazia, injustificada do ponto de vista objetivo (sachlich), parece-me ser uma consequência do subjetivismo moderno. Na verdade, não se pode outorgar nenhum privilégio a um poeta na explicação de seus versos, tanto quanto não se pode outorgar privilégios ao homem de estado para a explicação histórica dos acontecimentos em que ele próprio participou com sua ação. O autêntico conceito de autocompreensão, o único aplicável em todos estes casos, não deve ser pensado a partir do modelo da autoconsciência plena, mas a partir da experiência religiosa. Essa já sempre inclui que é só pela graça divina que os descaminhos da autocompreensão humana encontram o rumo para um fim verdadeiro, isto é, para a visão de que em todos os caminhos o homem deve ser conduzido para a salvação. Toda autocompreensão humana está determinada em si pela insatisfação. Isso vale também para a obra e a ação. Por isso, a arte e a história recusam-se, segundo seu próprio ser, a serem interpretadas a partir da subjetividade da [76] consciência. Pertencem àquele universo hermenêutico, caracterizado pelo modo de realização e pela realidade da linguagem, que ultrapassa toda consciência individual. Na linguagem, no caráter próprio que ela imprime em nossa experiência de mundo, encontra-se a mediação entre finito e infinito, adequada a nós, como seres finitos. O que nela se interpreta é sempre uma experiência finita, que, apesar disso, jamais se depara com aquela barreira, onde a única coisa que se poderia fazer ainda seria adivinhar algo infinito que se tem em mente, sem poder dizê-lo. Seu progresso não está limitado, e no entanto não é uma aproximação progressiva a um sentido que se tem em mente. O que perfaz seu sentido é lograr estabelecer a obra, e não o que é que se tem em mente com ela. O que concede sentido à sentença é a palavra acertada, e não o que está escondido na subjetividade do que se tem em mente. É a tradição que abre e delimita nosso horizonte histórico, e não um acontecimento opaco da história que acontece “por si”. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.

O que distingue uma práxis hermenêutica e sua disciplina do aprendizado de uma mera técnica, seja ela técnica social ou método crítico, é que na hermenêutica a consciência do sujeito que compreende sempre é co-determidada por um fator da história dos efeitos. Mas isso implica também a tese inversa, a saber, o que é compreendido sempre desenvolve uma certa força convincente que influi na formação de novas convicções. Não nego que a abstração das opiniões pessoais represente um esforço justificado de compreensão. Quem quer compreender não precisa afirmar o que compreende. E no entanto penso que a experiência hermenêutica nos ensina que a força dessa abstração é sempre limitada. Aquilo que compreendemos fala também e sempre por si próprio. E exatamente aqui que reside a riqueza do universo hermenêutico. A medida que desenrola toda amplitude de seu jogo, obriga também o sujeito que compreende a colocar em jogo seus preconceitos. Todas essas são conquistas da reflexão emanadas da praxis e dela somente. Peço clemência por mim, um velho filólogo, por ter exemplificado tudo isso no “ser para o texto”. Na verdade, a experiência hermenêutica está totalmente entretecida na realidade geral da praxis humana, na qual a compreensão do escrito chega a ser essencial, mas sua inclusão é apenas secundária. Chega tão longe quanto a disposição para o diálogo dos seres racionais. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

O que diferencia a práxis hermenêutica e sua disciplina da aprendizagem de uma mera técnica, seja uma técnica sociológica ou um método crítico, é que naquela um fator da história dos efeitos contribui constantemente para determinar a consciência de quem compreende. Isso implica necessariamente seu reverso, a saber, aquilo que é compreendido desenvolve sempre uma certa força de persuasão, colaborando assim na formação de novas persuasões. Não nego o fato de que quem busca compreender deve distanciar-se das próprias opiniões sobre as coisas. Aquele que quer compreender não precisa afirmar aquilo que está compreendendo. No entanto, penso que a experiência hermenêutica nos ensina que esse esforço só se torna eficiente dentro de certos limites. Aquilo que se compreende fala sempre também por si próprio. Nisso reside toda a riqueza do universo hermenêutico, que está aberto a tudo que é compreensível. Na medida em que coloca em jogo toda amplidão de seu espaço de jogo, o objeto obriga aquele que compreende a pôr em jogo seus próprios preconceitos. Esses são os benefícios da reflexão adquiridos na praxis e somente nela. O universo da experiência do filólogo e seu “ser para o texto”, que coloquei em primeiro plano, não passa de um fragmento e um campo de ilustração metodológica para a experiência hermenêutica, imbricada no todo da práxis humana. É verdade que nessa experiência a compreensão do que está escrito reveste-se de uma importância especial. Mas trata-se apenas de um fenômeno tardio e por isso secundário. A experiência hermenêutica tem na verdade um alcance tão amplo quanto o da disposição ao diálogo dos seres racionais. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.