Todo o pensar do Ocidente filia-se, de um ou outro modo, às ideias desenvolvidas por Platão e Aristóteles nas suas inquisições sobre o sentido de ser. A base dos resultados por eles obtidos na esteira dos fenômenos, constituiu-se, a seguir, a Metafísica, como expressão típica da Filosofia ocidental. Como um bem comum ao alcance de todos, eles perderam o caráter problemático de questão aberta. Daí por diante a questão do ser caiu no esquecimento, o seu sentido deixou de ser alvo de investigação sistemática propriamente dita. Sem retornar jamais a seus fundamentos, a Metafísica alimentou-se da problemática suscitada, pela interpretação ontológica da totalidade do ente, a partir da compreensão de ser, herdada dos gregos As inegáveis conquistas na decifração dos diversos fenômenos, que se verificam na história da Metafísica, desde a Escolástica medieval até Hegel, realizaram-se, todas, sob o comando indiscutido desta mesma ideia de ser.
Estas afirmações maciças soam, à primeira vista, estranhamente. A prote philosophia de Aristóteles, que está à origem da Metafísica tradicional, não é antes de tudo Ontologia, ciência do ente enquanto ente, do ser do ente ? Todo o seu questionar não gira em torno do ser? Como assacar então à tradição do Ocidente o esquecimento da questão do ser?
Para entender melhor a acusação de Heidegger, é preciso ter bem presente o seguinte. Heidegger não nega que a Metafísica seja guiada por uma determinada ideia de ser e, portanto, que ela conheça, de certo modo, o seu sentido. Qual seja a interpretação do ser vigente na Metafísica tradicional, segundo Sein und Zeit, acaba de ser indicado. O que Heidegger afirma é que esta ideia de ser, sobre a qual se baseia a Metafísica em toda a sua investigação, não é posta em questão, não constitui assunto de interrogação, de discussão temática. Em vez disso, esta ideia é transmitida, de geração em geração, como um pressuposto evidente, natural, sem que a sua origem e fundamento despertem a menor curiosidade.
É verdade também que a Metafísica, particularmente a escolástica, não cessou de interrogar a contextura interna desta noção, de apontar nela a dualidade essência-existência, e de examinar a relação entre estes dois elementos, de reconhecer a sua transcendência e de discutir o modo peculiar como ela se aplica a seus inferiores. Heidegger não desconhece nem despreza as especulações de Aristóteles e da Escolástica sobre a noção de ser, a analogia e o binômio essência-existência. Entretanto, estas questões não se identificam com a questão do sentido de ser, como a entende Heidegger. Elas a pressupõem e ficarão, de direito e de fato, em suspenso enquanto não se determinar o sentido de ser como tal. Pelo menos na sua configuração específica, elas não nascem senão a partir da compreensão de ser que está à base da Metafísica ocidental. É por isso que Heidegger, embora procurando o sentido de ser, precisamente enquanto transcendente, i. e., enquanto engloba na unidade de sua significação as mais diversas regiões do ente, não se pronuncia sobre a analogia do ser. Seria prematuro tematizar esta questão e mais ainda decidi-la, pois a questão do modo de significar, próprio do ser, depende da questão do próprio significado de ser. Daí se vê que o interesse da Metafísica pelas características da noção de ser não exclui o seu esquecimento da questão do próprio sentido de ser.
Não é este, entretanto, o tema das discussões tradicionais e recentes sobre a função respectiva da existência e da essência no interior da noção de ser? Procura-se, através da reflexão metafísica sobre a afirmação do ser (ou sobre comportamentos análogos do homem), descobrir o que significa, primariamente, ser. A resposta é que ser equivale, antes de tudo, a existir, já que o possível não se entende senão em função da existência atual. Entretanto, o existir no conceito de ser não é pensado independentemente da essência, i. e., do modo de existir. Trata-se do existir da essência.
Estamos, por acaso, diante da questão do sentido de ser? Evidentemente não. Tal análise revela tão somente que a nossa afirmação do ser implica dois elementos correlativos, entre os quais é preciso dar prioridade à existência. Ela contenta-se, portanto, com registrar com precisão científica o conteúdo da afirmação vulgar do ser. O sentido de ser, implicado nesta afirmação, não é posto em questão, Não se pergunta, p.ex., por que nós encaramos todo ente precisamente sob o duplo aspecto de essência e existência, nem tão pouco por que justamente a afirmação vulgar do ser é tomada como fio condutor da interpretação. As exigências mais elementares de uma hermenêutica filosófica da existência humana, capaz de situar rigorosamente a afirmação vulgar do ser no conjunto da estrutura e dos modos de ser do homem, são ignoradas. E, além disso, dizer que ser significa, propriamente, existir, equivale, por ventura, a determinar o sentido de ser como transcendente ? O sentido de ser nas perguntas an est ? e quid est?, nas expressões ens ut participium e ens ut nomem, é, sem dúvida, diverso. Nós podemos dizer, p. ex.: Isto não existe (não é atual), mas é possível. Se o possível também é, embora não exista, ser não pode significar, simplesmente, o que existe. Existência e essência, atualidade e possibilidade são, portanto, modalidades de ser. E mesmo que se admita que, entre estes dois modos de ser, o ato ou existência constitua o princeps analogatum, em função do qual se pode dizer que a potência ou essência ê, é necessário, em todo caso, atingir o sentido verdadeiramente transcendente de ser que, situado além da diferença entre o ser atual e possível, abrange ambos. Aliás, é só a partir da ideia elaborada de ser que se pode determinar, definitivamente, o sentido da distinção entre existência e essência e todas as questões conexas. Enfim, o ser cujo sentido está em questão, deve superar, na sua transcendência, não só a mencionada distinção entre atual e possível, que são modalidades do ser real, mas também a oposição entre este e o ser de razão. Também a Escolástica considera o conhecimento, enquanto tal, e a sua verdade, como algo que participa do ser, no entanto, não tem o modo de ser real, seja como atualmente existente, seja como possibilidade. Daí se vê que a pergunta “Que é ser ?”, feita pela Metafísica, apesar das aparências contrárias, não põe verdadeiramente em questão o sentido de ser. Fica, pois, de pé, a asserção de Sein und Zeit sobre o esquecimento total da questão do sentido de ser, após o seu cultivo incipiente na época de Platão e Aristóteles.