Página inicial > Léxico Alemão > Buzzi (IP) – a questão do ser

Introdução ao Pensar

Buzzi (IP) – a questão do ser

Prefácio

sábado 11 de setembro de 2021, por Cardoso de Castro

BUZZI  , A. Introdução ao pensar. Petrópolis: Vozes, 1973, p. 5-11

Neste inspirado prefácio que extraímos desta obra de quase cinquenta anos, o filósofo e frade franciscano, apresenta o pensar filosófico em termos e expressões que expõem sua maestria neste campo, desenvolvendo de maneira até poética o trato da "questão do ser", na sombra de Martin Heidegger. Lamentavelmente este prefácio não se encontra mais nas últimas edições de sua obra.

Introdução ao pensar é o título do livro que o leitor tem em mãos. Pensar é achegar-se à realidade no seu constitutivo mais profundo. Isso não significa que o pensamento esteja em algum momento fora, adejando na periferia do real. A realidade é cheia de pensamento. Tudo quanto existe proclama o pensamento.

Estamos envolvidos numa multiplicidade de entes que desvelam o pensamento. Pensar é permitir à realidade que está aí, na qual somos agasalhados, diga ela mesma quem é. Pensar é acolher o real tal qual é na radicalidade última de si próprio.

O pensamento vive pois recolhido nos entes que povoam o universo. Os entes, as coisas, são seu desvelamento: dizem quem ele é.

O homem, por estar na realidade, partilhando da aventura de ser, é dotado de capacidade de pensar, isto é, de perceber quem é o ser. Os demais entes estão também no pensamento, mas sem capacidade de pensar e de dizer. Por isso o homem é definido como ser que pensa ou animal que fala.

Quando o pensamento do homem se entrega ao desempenho de pensar e falar a realidade, institui o fenômeno denominado conhecimento. No homem o pensamento aparece na inebriante aventura de conhecer a realidade.

Qual o conhecimento que melhor revela o que é a realidade? É o conhecimento filosófico.

No conhecimento filosófico o pensamento ensaia uma radical compreensão da realidade. Pensar é pois filosofar. Filosofar não é ir para além, fora do real vivido. É um aproximar-se para mais perto do que se vive, é ir a sua raiz, é descobrir que aí lateja o espetáculo   do ser. Filosofar é criar um mundo diferente, não fora, mas no concreto mundo de agora, desvelando-o precisamente como diferente, revelando-o no vigor latente, esquecido às vezes na faina da vida.

O filósofo ambiciona colocar-se no centro do círculo da existência. De lá percebe como na circunferência as coisas se relacionam numa eterna perseguição de sim e de não, de verdadeiro e de falso, de bem e de mal, de autêntico e de inautêntico, que é o que constitui o mundo em que vivemos. Mas quem está no ponto-morto do círculo pode em princípio compreender todos os movimentos de negação e afirmação em sua correta interdependência, numa superior correspondência significativa.

Pensar ou sopesar nessa profundidade a estranha realidade que nos envolve é intenção da obra que o leitor está lendo. A cada passo é convidado a atingir esse alvo.

O alvo, porém, que o pensamento atingir, é apenas ponto de referência para um caminhar ulterior. O filósofo permanece sempre qual viandante no deserto que vê o invisível na representação de uma miragem. A miragem da representação não é ainda a verdade da realidade. Mas ela, a realidade, aí está anunciada, aí se proclama vigorosa, cativando os passos do caminhante.

«Todo o homem que for dotado de espírito filosófico há de ter o pressentimento de que, atrás da realidade em que existimos e vivemos, se esconde outra muito diferente, e que, por consequência, a primeira não passa de uma aparição da segunda» (Nietzsche  , F., Origem da Tragédia, Trad. de A. Ribeiro, Lisboa 1972, p. 37).

Quando a realidade começa a desocultar-se, o pensamento que a recolher no seu desvelamento por certo soçobra, incapaz de dizê-la. O espetáculo é tão extraordinário e envolvente! Nasce daí não tanto um falar, mas um calar, não tanto um dizer, mas um silenciar, não tanto um saber, mas uma amizade com a realidade.

Convocar o homem ao pensamento é convidá-lo à amizade com o ser, é evocar seu Destino, é instituir um espaço onde todos os seres racionais e irracionais são vistos na verdade de sua interioridade e acolhidos na justiça de seu ser, que transcendem as ideologias que dividem e os sistemas que separam.

Mais do que através de uma definição pré-formulada, é no ato mesmo de filosofar que se apreende o que é a filosofia. É no ato de andar que sabemos o que seja andar. É no ato de filosofar que sabemos o que seja filosofar. «A filosofia não é uma doutrina, mas uma atividade» (Wittgenstein  , L., Tractatus logico-philosophicus, 4.112).

A filosofia não é uma «teoria» elaborada que «representa» a vida. «A filosofia é uma atividade» significa: ela se situa num momento anterior à separação do teórico e do prático, pretende mostrar que em todo agir e ser, simples ou complexo, ordinário ou extraordinário, há um pensar latente, estruturante e constituinte. Filosofar é trazer à luz o pensamento radical, em cuja fluência está todo ser e agente.

O termo filosofia é de origem grega. Se conseguíssemos pronunciar e ouvir a palavra philosophia   como os gregos a pronunciavam e ouviam, não seria preciso explicitar-lhe o sentido, pois a língua grega, no seu brotar originário, tem o privilégio de nos pôr em presença da realidade no ato mesmo de nomeá-la. Nós hoje ouvimos primeiro a explicação etimológica da palavra philosophia   e é com dificuldade que transcendemos o simples ouvir ou ver a palavra em busca daquele sentido primitivo evocado pelo grego.

Foi Heráclito   quem presumivelmente criou o termo filósofo. Em grego philósophos procede de adjetivo philos   que significa amigo e sóphon que significa sabedoria. Filósofo é pois o amante da sabedoria. Amar a sabedoria é um saber falar com a sabedoria, é um corresponder a ela, é um estar-em-acordo, em harmonia com ela.

Onde está a sabedoria para que o filósofo crie com ela esses laços de correspondência, de harmonia e amor? A sabedoria é o todo, é a realidade, são os entes em sua totalidade. Podemos traduzir sóphon como o todo dos entes. O todo dos entes, porém, é cheio de pensamento; daí sóphon também significar sabedoria.

Quando o filósofo está no todo como quem sabe ler a harmonia nele inserida, como quem sabe corresponder à unidade dos entes, possui a sabedoria, o sóphon. Para tanto o filósofo precisa perceber o um que tudo une, que tudo harmoniza. Esse um é a própria realidade, é sua identidade última presente e estranha ao pensamento.

O sóphon, o um, não é uma coisa, um objeto entre os demais. O um é o que possibilita cada objeto ser ele mesmo, é o que possibilita o agente acolher e viver os acontecimentos, por díspares que sejam, numa unidade de integração superior. O um não é objetivável. É o imponderável que dá ao pensamento a competência de ponderar o que acontece em síntese significativa. Por exemplo, Pedro nasce, vive em família, morre-lhe a mãe, o pai vai à guerra, estuda, ama, casa, procria, adoece, envelhece e aguarda a morte. O espírito de Pedro, nessa caminhada existencial, viveu em unidade superior os acontecimentos, alegres e tristes, sem se perder, sem parar em nenhum deles, como a melodia que não pára numa nota, mas a todas percorre, como a poesia que não se perde num verso, mas se constitui na síntese unitária de todos os versos.

A Filosofia é pois aquele singular desejo do homem, tematizado no curso da história, desde os gregos até nós, de querer estar na harmonia do todo, de querer ver as coisas no um.

A filosofia não é um saber desligado da vida. Antes o contrário. Como a luz esparramando-se na realidade possibilita aos olhos vê-la em seus contornos definidos, capacitando-nos a andar entre as coisas com desembaraço e sem tropeço, assim é a filosofia um saber-luz que nos faz ver o sentido secreto da realidade. Filosofar é perceber a significação íntima do ser, é carregar a realidade na luz do conhecimento, é criar laços com cada ente na harmonia do todo.

A filosofia é por conseguinte um saber em proveito do homem. Platão   (Eutidemo, 288d-290d) diz que de nada serviria possuir a capacidade de transformar as pedras em ouro a quem não soubesse valer-se do outro, de nada serviria uma ciência que tornasse imortal a quem não soubesse servir-se da imortalidade. E1 necessária, portanto, uma ciência em que coincidam pensar e ser, e esta ciência é a Filosofia.

O conhecimento filosófico da realidade não deve ser concebido como um retrato da realidade. Conhecer o sentido da realidade não é retratar a realidade. É antes pensar a realidade. Em contraposição às demais ciências. Hegel   reservava à Filosofia o privilégio de ser a «consideração pensante dos objetos» (Enciclopédia, § 2). Pensar na significação etimológica do termo quer dizer sopesar, pôr na balança para avaliar o peso de alguma coisa. O pensamento quando faz filosofia não se desliga das coisas. Antes o contrário. Imerge no âmago das coisas, mergulha no roldão da vida, vive a realidade por dentro, pen-sando-a em seu significado.

Esse significado íntimo da realidade é alcançado pelo pensamento já envolvido no meio das coisas, participando do ser, vivendo-o antes de se pôr na atividade explícita de pensá-lo, isto é, de sopesá-lo, de apreciá-lo. A filosofia é apenas o tornar explícita a significação implicitamente vivida. É revelar a dinâmica da existência na qual o pensamento já está embalado.

O filósofo é um homem engajado na realidade, mergulhado na dinâmica profunda da vida. Seu pensamento, isto é, seu apreciar a realidade, é tanto mais acertado quanto mais estiver vivendo. Para dar início e sustentar o caminhar filosófico não basta estar-frente à vida, não basta olhar sobre ela. É preciso participar da vida, sentir-se ligado a ela por laços invisíveis.

A vida é feita de mil e um pequenos eventos: gestos de comer, beber, andar, trabalhar, brincar, sofrer, amar, lutar, odiar, guerrear. Ela cresce em plenitude na medida em que o espírito souber vivenciar a mesma poesia presente em todos os eventos. A filosofia é assim a arte que revela e custodia a beleza do ser, mostrando que todos os momentos são versos de um só e grande poema.

O exemplo talvez ilustre melhor o que pretende o pensar do filósofo:

Pelo peso medimos o valor das coisas. Pesar uma coisa é dizer sua valia, é apreciar sua consistência. Em geral servimo-nos da balança para fazer esse «sopesamento» e por conseguinte essa avaliação das coisas. Mas pela balança o peso vem expresso em números. Declaramos, por exemplo, que a melancia pesa dois quilos. Dois é uma avaliação abstrata, pois dois não é a melancia.

Suponhamos que não temos balança. O caso é frequente no interior. Imaginemos estar no sítio de um camponês. Que ele nos queira vender qualquer bem de campo ao preço de quilo-peso. Você que é inexperiente na avaliação do peso toma a mercadoria na mão e não sabe sopesá-la. O camponês, porém, que tem o métier de pesar as coisas sem a balança, toma-a na mão, faz um movimento braçal de cima para baixo, de baixo para cima, sopesa-a, sente-lhe o peso em todo seu corpo, aprecia-a por senti-la como que colada ao corpo, ele sabe quanto pesa e lhe diz os quilos.

Em casa, depois, você põe a mercadoria na balança e verifica que de fato pesa aquele tanto que o camponês lhe dissera. Agora você também sabe por instrumentos científicos que a «coisa» que você comprou pesa tantos quilos. Seu saber, porém, é um saber-desligado-da-coisa, ao passo que o do camponês é um saber-ligado-à-coisa, imerso na coisa, sentido, vivido e depois proclamado. O saber do camponês é afundado no ser, ligado à vida. O resultado numérico do peso da coisa é o mesmo. O processo de conhecer esse resultado é diverso, indica dois modos de viver bem diferentes.

O sopesar do camponês não deve ser compreendido como um substitutivo rudimentar da balança. O que se quer aqui mostrar são dois modos de sopesar, de pensar alguma coisa. Um modo mais radical, mais originário, mais envolvente; outro mais objetivo, mais abstrato, mais distanciado da existência. Este também parte da experiência, mas num segundo momento se desliga do concreto vivido para dizê-Io num modo abstrato, proposto pelo sujeito. O espírito se fixa então no modelo e a coisa experienciada é como que «esquecida», ela como que se «retrai». Impera o modelo, a estrutura abstrata: todas as coisas postas na balança são avaliadas no modelo quilo-peso.

O filósofo vive afundado na vida e a filosofia é uma ciência apreciativa do ser vivido e percebido em sua radicalidade máxima.

Sem essa conexão, sem essa solidariedade com o ser da existência não há filosofia. A filosofia não é um saber justaposto ao ser, mas um saber revelador do ser.

Há uma definição de «propriedade» de Saint-Exuréry que bem exprime essa solidariedade do saber com o ser. Diz o escritor: «Vem alguém à minha propriedade e fala: lá é muito pobre. Só tem algumas pedras, algumas árvores e algumas cabras. Ele não viu a minha propriedade. Aquilo era só o território. O principal estava invisível. O que faz a minha propriedade é aquilo que não se vê e que liga as pedras, as árvores e as cabras e me liga a tudo».

O exemplo de Saint-Exupéry, melhor que o anterior, mostra dois níveis de declaração da realidade. O primeiro, vamos chamá-lo de nível funcional, onde impomos uma estrutura-operativa às coisas e falamos não diretamente delas, mas da estru-tura-operativa que colocamos sobre elas. Conhecer a estrutura, porém, não é ainda conhecer a coisa. Assim é possível ao advogado saber «melhor» que o camponês o que é propriedade, porque conhece e domina a estrutura que o homem impôs às coisas.

O segundo nível, vamos chamá-lo de significativo. «Propriedade» nesse nível não indica um modo jurídico, operativo, de posse da coisa. Indica a solidariedade, a comunhão invisível entre o homem e a coisa. Quando se estabelece esse diálogo comunicativo, quando se efetua esse encontro, então a coisa se dá ao homem em sua estranha beleza: ele a descobre, ela se revela, ele a faz sua própria. Permitir que essa beleza significativa tome conta do espírito é tornar-se senhor das coisas, é ter o mundo como sua propriedade.

Exprimir essa experiência recôndita e invisível que fazemos das coisas é função do filósofo. Seu saber é diferente do fatual-descritivo, é de outra ordem. É um saber que envolve o filósofo no compromisso de se aniquilar no ser para senti-lo na sua nascividade elementar. Só então dirá aquilo que o ser é.

Por isso a filosofia se aproxima da arte. O artista e o filósofo mergulham, cada qual a seu modo, no ser, vivem-no na sua interioridade máxima, e quando falam, quando dizem quem ele é, se fazem profetas do invisível, anunciadores de algo que no imediato visível não se percebe. «No poetar do poeta, como no pensar do filósofo, de tal sorte se instaura um mundo, que qualquer coisa, seja uma árvore, uma montanha, uma casa, o chilrear de um pássaro, perde toda monotonia e vulgaridade» (M. Heidegger, Introdução à Metafísica, Rio, 1969, p. 55).

Retomando o que dizíamos sobre a íntima solidariedade entre a filosofia e a vida, concluímos que quem vive não pode deixar de filosofar. Viver é filosofar. Isto porque o viver-humano inclui um mínimo de decisão. Ser-homem não é um estado já feito. Ser-homem é uma decisão. É como o encontro, o amor. Eles se fazem no processo. O homem se institui no processo decisório de ser-homem. E nesse processo decisório o homem se eleva acima do fato físico ou biológico, introduz o acontecimento chamado História, que é a investigação do ser-humano que se faz, que se essencializa.

Consciente ou inconscientemente, explícita ou implicitamente, quem vive possui uma filosofia de vida, uma concepção do mundo. Esta concepção pode não ser manifesta. Em geral ela se aninha nas estruturas inconscientes da mente. De lá comanda a vida, dirige-lhe os passos, norteia sua conduta. A vida concreta de todo homem é assim filosofia. O campônio, o operário, o técnico, o artista, o jovem, o velho vivem todos de uma concepção do mundo. Agem e se comportam de acordo com uma significação inconsciente que emprestam à vida. Nesse sentido pode-se dizer que todo homem é filósofo.

Não podemos, porém, dizer que todo homem é filósofo no sentido usual da expressão. A palavra filósofo ficou reservada àqueles que consciente e deliberadamente se põem a filosofar: escolhem um método, sistematizam os conhecimentos obtidos, arquitetam um sistema interpretativo da realidade. Filósofo é então aquele que diz em conceitos e em linguagem apropriada a experiência do ser. Os conceitos e a linguagem não estão à margem do ser vivido. A filosofia vazada na linguagem conceptual é profundamente solidária à vida, à existência. Ela marca o desejo, a ânsia que o homem tem de elucidar sua circunstância existencial.

Filosofar é pois um saber situar-se, um ver seu caminhar, um perceber o existir como solidariedade íntima do pensar e do ser e sua expressão em conceitos adequados, enunciados numa linguagem comunicativa.

Precisamos pois falar desses três momentos da filosofia: o ser a dilucidar, de sua dilucidação, o conhecer, e de sua expressão comunicativa, a linguagem.